Ano 16, No 122, Agosto de 2021
André Cezar Medici
Introdução
O 15 de agosto de 2021 ficará conhecido na
história como o dia em que os homens do Talibã venceram a guerra contra as
mulheres de seu país. As mulheres do Afeganistão tinham como pretensos aliados
homens e mulheres em muitos países ao redor do mundo. Mas, depois de 20 anos
tentando garantir a sustentabilidade democrática ao país, os Estados Unidos da
América (EUA), as nações do ocidente e os organismos internacionais, que valoram
a igualdade entre gêneros como uma das principais bandeiras da democracia do
século XXI, foram obrigados a abandonar a construção de um projeto de nação que
ainda merecia muito esforço internacional para se consolidar.
Antes de me aposentar do Banco Mundial, em
julho de 2020, dediquei cerca de três anos de minha vida a trabalhar na Região
do Sul da Ásia, em diversos países e, entre eles, o Afeganistão. Trabalhar em
um país em guerra, para um funcionário de organizações internacionais, não é
uma tarefa fácil. É necessário realizar cursos práticos detalhados de segurança,
autodefesa e resposta a situações arriscadas (SAFE) fornecidos pelas Nações
Unidas por profissionais de defesa com experiência em países de alto risco e
situações de guerra ou guerrilha, em geral, em áreas que simulam as condições a
serem experimentadas nestes contextos.
Mesmo com o treinamento SAFE que realizei na
região do Lago Naivasha (Quênia), nossa circulação no Afeganistão
durante as missões era bem limitada, com transporte blindado, segurança armada
do aeroporto até a embaixada e clausura na Representação do Banco (limitada a
um número reduzido de pessoas) com poucas viagens aos sítios onde teríamos
reuniões com representantes do governo e da sociedade civil, também revestidas
de segurança máxima. Essa condição era necessária, dado que durante as missões,
as quais não podiam se estender por mais de 5 dias, o chefe da segurança da
representação – em geral um militar – nos dava uma panorâmica diária do que
ocorria em Kabul, com incidentes, atentados, bombardeios, sequestros e foguetes
lançados pelos talibãs e outros grupos terroristas nas áreas protegidas, os
quais em algumas ocasiões atingiram a Representação do Banco. Ao sair da Representação
tínhamos que usar capacetes e coletes à prova de bala e muitas vezes, quando os
alarmes soavam, íamos para os abrigos antiaéreos ou áreas protegidas do bunker
da Representação. A mesma situação se repetia em embaixadas e outros
escritórios de organismos internacionais, que ficavam em sua maioria na Zona
Verde, uma área de Cabul protegida e vigiada pela segurança nacional e
internacional.
Nos anos que trabalhei no país, participei do
esforço conjunto do Banco com diversos organismos internacionais e oficinas
bilaterais de cooperação dos países que apoiavam a reconstrução do Afeganistão
pós-talibã. A tarefa de nosso grupo era apoiar, através de estudos, projetos,
empréstimos e mobilização de recursos e consultoria, a construção de um sistema
de saúde que pudesse trazer melhores condições de vida para uma população em circunstâncias
altamente precárias em função da guerra, da pobreza, da falta de recursos
públicos e, principalmente, pela submissão das mulheres às regras extremas do
fanatismo religioso, especialmente nas regiões e cidades ainda controladas
direta ou veladamente pelos talibãs.
Esta postagem é longa e reflete, em parte, o
que aprendi nesta experiência, além de minhas impressões, sobre a difícil saga
de libertação das mulheres do país, cujas condições de vida melhoraram nos anos
que se seguiram à primeira dominação talibã entre 1996 e 2001. Mas ainda havia
um longo caminho a percorrer para se consolidar e trazer condições de
dignidade, liberdade, saúde e educação minimamente adequadas para a população
feminina daquele país. A guerra civil no Afeganistão tem sido antes de tudo,
uma guerra contra as mulheres. O nacionalismo e a ojeriza dos grupos
extremistas religiosos aos valores do ocidente são meros pretextos para evitar
o conhecimento, o aprendizado e a liberação da consciência da população
feminina, através de melhores níveis de educação, oportunidades de trabalho e
autonomia, tornando-as livres dessa forma cruel de escravidão.
As Mulheres Afegãs e as Regras da Sharia
Com a vitória consolidada na semana de 15 de
agosto de 2021, os homens talibãs poderão voltar a implantar no país as leis
islâmicas medievais da Sharia, pelas quais as mulheres são seres
inferiores aos homens e sujeitas a uma espécie de escravização por estes,
podendo sofrer castigos, discriminações e punições sem haver necessária
justificativa[i].
A visão da Sharia tradicional, exacerbada pela
prática religiosa dos talibãs, define que os homens foram elegidos por Deus
para administrar a vida das mulheres. Nesse sentido, mulheres justas seriam
aquelas que lhes devem cega obediência. Muitos destes princípios estão
diretamente escritos nos versículos do Alcorão (Quran), mas também se
encontram nos chamados ditados de Maomé (ahadith). Por exemplo, de
acordo com o Alcorão, versículo Q 4:34, os maridos podem bater em suas esposas
se eles “temerem a desobediência” (o que significa que a desobediência real nem
precisa ocorrer para que a surra seja justificada).
O versículo Q 2:282 do Alcorão prega que o
testemunho de uma mulher vale apenas a metade do de um homem e, portanto, numa
situação de julgamento seria necessário o testemunho de mais de duas mulheres
para desempatar o testemunho em contrário de um único homem. De acordo com os versículos
Q 4:11 e Q 4:176, uma mulher poderá herdar apenas a metade do que herdaria seu
irmão. E num casamento entre um homem islâmico e uma mulher não islâmica, ela
perderia qualquer direito à herança de seu marido. De acordo com o versículo Q
65:4, os homens podem casar e manter relações sexuais com mulheres que ainda
não tiveram seu primeiro ciclo menstrual, ou seja, crianças.
Ainda de acordo com as regras da Sharia, um
marido pode se divorciar de sua esposa simplesmente declarando: “estou
divorciado”, por três vezes, na presença de dois homens adultos mentalmente
sãos. E, mesmo sem ter que justificar sua decisão, ele manterá a custódia de
todos os filhos em detrimento da mulher. Em contraste, tal poder não é dado à
esposa a qual nunca poderá romper os laços matrimoniais e se divorciar sem a
aceitação do marido.
A Sharia original proíbe que mulheres governem
países em todos os níveis[ii]
e por este motivo não poderiam ser califas. Mas muitos países muçulmanos
romperam esta prática há alguns anos, como comprovaram os governos de Benazir
Bhutto por dois mandatos no Paquistão (1988-90 e 1993-96) e o de Shikha
Hasina que venceu as eleições três vezes e ocupa a posição de
primeiro-ministro de Bangladesh desde 2009.
A Sharia original também permite a poligamia
masculina, ou seja, um homem poderá ter várias esposas, mas em muitas nações
muçulmanas esse costume tem sido abandonado. No Afeganistão ele continua sendo
tolerado e praticado e, embora não seja frequente, houve um crescimento dessa
prática durante o primeiro emirado do país sob o domínio dos talibãs
(1996-2001).
Maomé (em um de seus ahadith) afirmou
que as mulheres devem total obediência aos homens por serem seres inferiores,
deficientes em inteligência e em religião. Segundo ele, elas amaldiçoam e
frequentemente são ingratas aos seus maridos e, por este motivo, ocupam a quase
totalidade do reino dos infernos. Um homem que não é cauteloso e sensato
correria um sério risco de ser desencaminhado por elas.
Por fim, de acordo com as leis da Sharia, o
estupro de mulheres – especialmente dos inimigos – é permitido e estimulado. De
acordo com os versículos Q 4:3, Q 4:24, Q 23:5-6, Q 70:22-30, do Alcorão, mulheres
do inimigo podem ser capturadas numa guerra e se tornarem escravas. Ter
escravas como estas é permitido aos homens mesmo que sejam casados.
A maioria dos países islâmicos modernos estão
progressivamente reduzindo a desigualdade de gênero e se adaptando aos
princípios da democracia do século XXI. Mas a Sharia foi o corpo legal
utilizado pelo emirado dos talibãs que governou o Afeganistão entre 1996 e 2001
e poderá voltar a sê-lo neste momento em que os talibãs retomam o governo do
país. Para entender o impacto desta história na vida e na saúde das mulheres do
Afeganistão, vale a pena fazer uma retrospectiva.
A Conturbada História do Afeganistão: da
Monarquia aos Talibãs
Por ser uma região de passagem entre Ocidente e
Oriente e entre Sul e Norte, a história do Afeganistão monta a milênios, recebendo
influências hindus, hunos, kushan, persas, gregas, mongólicas, e de muitas
outras nações e civilizações. A principal influência – a muçulmana - também é
antiga e remonta ao século VII. Mas a região onde se situa o país só se
consolidou como estado em 1880, após várias guerras coloniais contra a
Inglaterra, instituindo seu governo como uma monarquia.
Entre 1880 e 1933 o país sofreu graves turbulências devido a conflitos coloniais com a Inglaterra, insurreições regionais e guerras fronteiriças. Em fevereiro de 1919, a independência unilateral do Afeganistão da Inglaterra foi declarada por Amanullah Khan, e uma terceira guerra anglo-afegã começa a ocorrer alo longo de 4 meses. No entanto, em agosto de 1919 um armistício foi assinado e o país progrediu sob o governo de Amahullah Khan, primeiro como Emir e depois como Rei, até sua abdicação em 1929 em favor de seu ministro da guerra, Muhammad Nadir Shah, que reinou de outubro de 1929 até seu assassinato em novembro de 1933.
Nadir Shah abandonou as reformas lanladas por Amanullah Khan em favor de uma abordagem mais gradual de modernização. Em 1933, seu filho Mohamad Zahir Shah subiu ao trono e reinou até 1973, sob muita instabilidade política, compondo distintas e efêmeras alianças regionais e internacionais.
Em 1964, ele promulgou uma nova Constituição Liberal em 1964 que
transformou o país em uma monarquia parlamentarista bicameral e definiu a
escolha pelo voto direto de dois terços dos representantes do Parlamento, que
antes eram nomeados pelo rei. Além do mais, a Constituição estabeleceu
igualdade de todos (homens e mulheres) em temas de direitos a saúde e educação,
os quais seriam ofertados pelo Estado. Foi um período de libertação e maiores
oportunidades para as mulheres[iii].
Mas em meio a acusações contra a família real que
envolviam corrupção e prevaricação e más condições econômicas criadas pela
severa seca de 1971-1972, o ex-primeiro-ministro Mohammad Sardar Daoud Khan
tomou o poder em um golpe não violento em 17 de julho de 1973, abolindo a
monarquia e revogando a Constituição de 1964. Daoud Khan instaurou uma
República e se autonomeou primeiro presidente e primeiro-ministro do país. Ao
longo de sete anos ele tentou realizar reformas econômicas e sociais que não
tiveram sucesso, e sua nova Constituição, promulgada em fevereiro de 1977, também
não conseguiu conter a instabilidade política crônica do país[iv].
Diante do descontentamento e da instabilidade
política, o Partido Democrático do Povo do Afeganistão (PDPA), de cunho
marxista-leninista, ainda que minoritário, impetrou, com apoio da União
Soviética, um golpe de estado em abril de 1978 que ficou conhecido como Revolução
Saur. O golpe envolveu combates pesados entre grupos militares e civis e acabou
resultando em muitas mortes. Daoud Khan e sua família foram mortos e Nur
Muhammad Taraki, um dos fundadores do PDPA[v],
assume o poder como Presidente do país e Secretário Geral do PDPA.
A Revolução Saur foi um evento significativo na
história do Afeganistão, marcando o início dos atuais 43 anos em que o país se
encontra em conflito permanente. As reformas propostas pelo novo governo
envolviam uma profunda transformação da sociedade, especialmente em relação ao
papel das mulheres. O PDPA era um defensor dos direitos iguais para homens e
mulheres, introduzindo-as na vida política de uma forma articulada. Anahita
Ratebzad, uma importante líder marxista-leninista e membro do Conselho
Revolucionário, escreveu no editorial do jornal New Kabul Times de 28 de
maio de 1978, que: "Os privilégios que as mulheres, por direito, devem
ter são educação igual, segurança no emprego, serviços de saúde e tempo livre
para criar uma geração saudável e construir o futuro do país ... Educar e
esclarecer as mulheres é agora assunto de grande atenção do governo”.
Mas as reformas propostas pelo PDPA, sendo
inicialmente bem recebidas por muitos que estavam insatisfeitos com o governo
de Daoud, acabaram resultando em desentendimentos entre as facções internas
do partido e falta de apoio da sociedade. Em agosto de 1978, a descoberta de uma
tentativa de golpe de estado levou o governo a executar e prender vários
membros do gabinete, incluindo o general Abdul Qadir que havia sido o
líder militar da Revolução Saur. Para manter um maior controle interno no PDPA
e no governo, Taraki nomeou em março de 1979, Hafizullah Amin[vi]
como Primeiro Ministro.
Desde o início, o governo do PDPA procurou
manter uma abordagem moderada para que as reformas a serem propostas fossem
assimiladas progressivamente. Assim (provavelmente instruído pelos próprios
soviéticos) o governo declarou que o golpe não era comunista, como meio de
evitar animosidade e ganhar a adesão da população islâmica no país.
No entanto, Amin, como homem forte do
governo, parecia não compartilhar desta visão moderada das reformas. Desde
outubro de 1978, o governo havia lançado medidas que atingiram a estrutura
tribal socioeconômica do Afeganistão, como por exemplo, a mudança da bandeira
nacional, de cores tradicionais islâmicas (preta, vermelha e verde) para uma
bandeira vermelha similar à da União Soviética. Algumas reformas foram largamente
incentivadas pelo radicalismo de Amim, como a restrição ao crédito agrícola (o
PDPA era contra a usura) sem criar alternativas para os produtores rurais que
dependiam do sistema tradicional de crédito, o que acabou levando o país a uma
crise agrícola de grandes proporções. Num país rural e baseado na pequena
produção, as reformas confiscaram terras de uma maneira desordenada não
beneficiando a ninguém e reduzindo a produção de alimentos. Isto levou à
criação de uma resistência popular que foi o embrião do movimento
mujahidin (termo que significa engajados na Jihad) o qual
teve origem no campo. Além dessas medidas, o governo sob a liderança de Amin
promoveu o ateísmo estatal. Os homens foram obrigados a cortar a barba; as
mulheres foram proibidas de usar a burca e as visitas e atividades em mesquitas
começaram a sofrer restrições.
Diante das crescentes resistências populares
decorrentes destas medidas, Taraki parece ter sido instruído pelos
soviéticos a remover Amin para que o PDPA voltasse a contar com o apoio
das tribos islâmicas no campo. Munido destas orientações, Taraki tentou
enfraquecer o gabinete liderado por Amin destituindo-o do cargo de primeiro
ministro, mas este, com seus poderes e prestígio pessoal fortalecidos entre
os quadros militares do governo, reverteu a situação, destituindo Taraki
do poder presidencial e mandando prendê-lo e matá-lo em setembro de 1979.
As disputas comunistas intramuros, além de não
agradarem aos soviéticos, ameaçavam desestabilizar o regime comunista afegão em
face da crescente resistência muçulmana. Assim, no outono de 1979, os
soviéticos aumentaram seu poderio militar além da fronteira. Em 25 de dezembro
de 1979, o exército soviético iniciou a ocupação do Afeganistão, e dois dias
depois, organizou um enorme transporte aéreo militar para Cabul, envolvendo
cerca de 280 aeronaves e 3 divisões de quase 8.500 soldados cada. Em dois dias,
as forças soviéticas tomaram Cabul, desdobrando um assalto contra o Palácio presidencial
Darul Aman, onde elementos do exército afegão leais a Amin
opuseram uma feroz, mas breve resistência, resultando na morte de Amin. Babrak
Karmal, outro fundador do PDPA exilado por Taraki na Tchecoslováquia
onde se ligou à KGB, foi conduzido pelos soviéticos a liderança do novo governo
do Afeganistão.
É possível que a preferência dos soviéticos pudesse
ter sido a manutenção de um regime nativo aliado, ao invés da invasão do país,
mas o comportamento de Amin e a relutância de Moscou em ter como risco a
ameaça muçulmana ao regime comunista levaram a uma solução mais drástica. Por
outro lado, as províncias da Ásia Central anexadas pela União Soviética também
eram vulneráveis ao surgimento do fundamentalismo islâmico e, com isso,
manter o Afeganistão como estopim de uma revolução islâmica poderia incendiar
todo o seu “paiol” de estados centro-asiáticos.
Karmal contava com o apoio incondicional dos
soviéticos e tentou reverter o sentimento da população que era contrário ao
PDPA. Entre 1980 e 1987 o país passou a chamar-se República Democrática do Afeganistão
e a bandeira nacional recobrou suas cores islâmicas tradicionais. Mas as
divisões internas do PDPA levaram Karmal a sair do governo em 1986, assumindo a
presidência Mohammad Najibullah que permaneceu até 1992.
O domínio soviético no país foi, novamente, um
dos mais conturbados períodos da história afegã. Entre 1979 e 1992, quando a
intervenção soviética termina, o governo afegão perdeu o suporte e a autoridade
junto à população. Como ocorreu na segunda semana de agosto de 2021, no recente
episódio da derrota do governo Ashraf Ghani pelos talibãs, os soldados
afegãos desertaram em massa ao longo do período e as tribos muçulmanas
organizadas sob a égide do movimento mujahidin, subsidiado com armas e
recursos financeiros norte-americanos chineses e de outros países muçulmanos,
como a Arábia Saudita e o Egito, resistiu nas montanhas contra mais de 600 mil
soldados soviéticos ao bombardeio de suas aldeias. Entre os distintos grupos do
movimento mujahidin, destacava-se o liderado por Massoud[vii].
Cerca de 5 milhões de afegãos (quase ¼ da população do país) tornaram-se
refugiados no Paquistão e no Irã, de onde também recebiam apoio e organizavam a
resistência, o que levou à caracterização do Afeganistão como o “Vietnã dos
soviéticos”.
Para culminar, a União Soviética, ao se
desintegrar a partir de 1986, sob a égide da Glasnost de Michael
Gorbachev, começou a organizar a desocupação do Afeganistão, diante dos
altos custos humanos, militares e financeiros da guerra de guerrilhas travada
pelos mujahidin, da precariedade da infraestrutura de saúde e da administração
corrupta de um país que permanecia em frangalhos[viii].
Os acordos de Genebra liderados pela Organização das Nações Unidas (ONU)
marcaram o calendário para a retirada das tropas da União Soviética e a
devolução do país para os grupos nacionais. Tentativas de acordos de paz,
lideradas pelo Paquistão, também contribuíram para este processo ao longo de
1987 e 1988.
Uma nova Constituição entrou em vigor em
novembro de 1987 e o nome do país voltou a ser República do Afeganistão.
O Conselho de Estado foi substituído por uma Assembleia Nacional pela qual
distintos partidos poderiam competir livremente e Mohammed Hassan Sharq,
um político não vinculado ao PDPA, foi nomeado primeiro-ministro. A presidência
de Najibullah recebeu novos poderes, ainda que com sua temporalidade
limitada por um mandato de sete anos. Mas após a partida soviética, Najibullah
derrubou a fachada de governo compartilhado e removeu Sharq e outros
ministros não partidários de seu gabinete.
Como participante e um dos artífices da
desocupação coordenada pelos esforços internacionais, Najibullah teria
que enfrentar o movimento mujahidin sem o apoio dos soviéticos. Mas
muitos países, incluindo EUA, China e países muçulmanos, apoiavam econômica e militarmente
os movimentos mujahidin e acreditavam que a resistência islâmica
conseguiria rapidamente retomar o país e depor o regime comunista ainda vigente.
Diante dos fatos, a União Soviética respondeu em apoio ao Afeganistão com uma
enxurrada de suprimentos militares e econômicos. Muito do equipamento militar
pertencente às unidades soviéticas que evacuaram a Europa Oriental no
pós-Glasnost foi enviado para o Afeganistão. O apoio soviético atingiu o valor superior
a US $3 bilhões por ano, por volta de 1990.
O período que vai de 1987 a 1991 resultou em
uma guerra fraticida, aonde os grupos mujahidin se mostraram incapazes
de vencer o exército moderno deixado ao país como herança pelos soviéticos. Não
conseguiram coordenar movimentos táticos ou logísticos e manter uma coesão
política (especialmente pelas divergências entre grupos xiitas e sunitas) necessária
para enfrentar as forças nacionais ao longo dos três primeiros anos que se
sucederam a saída dos soviéticos. Pouquíssimas áreas do país foram capturadas ou
mantidas sob o domínio de grupos mujahidin.
A saída de Gorbachev do governo russo e
a posse de Boris Yeltsin, em agosto de 1991, enfraqueceram o suporte que
o governo de Najibullah ainda recebia dos
soviéticos. Yeltsin acertou com os norte-americanos e a ONU um plano de corte
recíproco de apoios econômicos e militares, tanto ao governo quanto à
resistência islâmica, e concordaram que deveriam pressionar para a realização
de eleições no país, enfraquecendo com isso o apoio recebido por Najibullah,
que começou a interagir com seus oponentes como tática de defesa e divisão
interna dos grupos mujahidin.
Mas os recursos disponíveis pelo governo para
esta interação, agora sem apoio dos soviéticos, ficaram limitados impossibilitando
a compra de lealdades destes grupos guerrilheiros. Assim, com o apoio
internacional e popular ao governo se reduzindo, a queda do governo Najibullah
acabou ocorrendo em 17 de abril de 1992 pela tomada de Kabul pelos grupos mujahidin.
A escolha de um governo de transição, foi proposta por Benon Sevan,
secretário geral da ONU, com o objetivo de implementar um processo de eleições
democráticas no país. Sevan buscou garantir uma troca pacífica de poder
do governo interino de Cabul, que substituiu Najibullah em 18 de abril
de 1992. Um governo de transição, representado pelas forças de Ahmed Shah
Massoud e Abdul Rashid Dostam foi instituído, mas permaneceu
sem um acordo de paz, dado que o grupo mujahidin Aliança do Norte,
liderado por Massoud, era favorável a políticas contrárias às práticas fundamentalistas,
como o trabalho e educação das mulheres, além da abolição de costumes
religiosos que mantinham uma forte inequidade de gêneros. Por estes motivos, Massoud
sofria forte oposição de grupos sunitas que queriam um estado islâmico
vinculado aos princípios radicais da Sharia.
Assim, a esperança de uma abordagem neutra e
abrangente para um acordo político entre os distintos grupos mujahidin afegãos
foi frustrada. Em uma semana após a posse de Massoud e Dostam e a
inauguração do Estado Islâmico do Afeganistão, uma nova guerra civil
começou entre os grupos vencedores e as milícias sunitas, que se estendeu até
1996. Massoud foi nomeado Ministro da Defesa, bem como o principal
comandante militar do governo do Afeganistão durante a guerra civil travada entre
1992 e 1996. Sua milícia lutou para defender Cabul contra outras milícias
lideradas por Gulbuddin Hekmatyar e outros senhores da guerra e também posteriormente
contra as forças talibãs[ix],
que sitiaram a capital em janeiro de 1995, depois que a cidade viu ferozes
combates com a morte de pelo menos 60 mil civis, obrigando-o, com suas tropas,
a se refugiar em áreas controladas pela sua liderança política e militar.
Massoud tinha convicções opostas aos talibãs no que se
refere aos temas de gênero. Ao longo do conturbado período de guerra civil que
marca sua administração nas áreas dominadas por suas milícias, mulheres e
meninas não eram obrigadas a usar a burca afegã. Elas podiam trabalhar e
frequentar escolas. Ainda que fosse uma época de guerra, as escolas femininas
estavam abertas nestas localidades. Em pelo menos dois casos conhecidos, Massoud
interveio pessoalmente contra casamentos forçados para que as mulheres fizessem
sua própria escolha. Em setembro de 2000, Massoud assinou uma Declaração dos
Direitos Essenciais das Mulheres Afegãs, redigida por grupos de libertação
das mulheres. A declaração estabelecia a igualdade de gênero perante a lei e o
direito das mulheres à participação política, educação, trabalho, liberdade de
movimento e expressão[x].
Os talibãs, como grupo político-religioso
sunita, surgiu em 1994 e teve um rápido crescimento em função de seu apelo
religioso radical e sua ação autoritária e repressiva contra os costumes
herdados do governo laico e anti-islâmico liderado pela União Soviética. Apoiados
com recursos internacionais, especialmente do Paquistão[xi]
e Arábia Saudita, os talibãs tomaram Cabul em 1996 e governaram o Afeganistão entre
1996 a 2001, tendo como Presidente do Conselho Supremo, ou Emir, o fundador do
talibã Mulá Mohammed Omar[xii].
O governo talibã, conhecido pelo seu radicalismo islâmico, teve reduzido seu
apoio internacional, ainda que países como Paquistão, Arábia Saudita, e Emirados
Árabes os tivessem reconhecido oficialmente e apoiado, em alguns casos, de
forma clandestina.
Com um regime político religioso radical e
punhos de aço, a liderança talibã impôs éditos islâmicos estritos, negando às
mulheres o direito ao trabalho e à educação, aprisionando-as em casa ou
obrigando-as a usar vestimentas tradicionais que maculavam seu conforto e
autoestima. Durante o período de dominação talibã (1996-2001), as mulheres
foram punidas por suas transgressões com açoites, amputações e execuções[xiii].
As punições e execuções para as que infringiam suas regras eram realizadas em
público como forma de espalhar o terror e garantir o respeito às regras
impostas, buscando evitar ações coletivas que fragilizassem os processos de opressão
feminina vinculados ao regime.
Durante seu governo entre 1996 e 2001, os talibãs
“forçaram as mulheres afegãs a desaparecerem completamente da vista do
público”, de acordo com o escritor Ahmed Rashid. Com base em sua
interpretação particularmente conservadora da prática islâmica, os talibãs
proibiram as mulheres de trabalhar e frequentar escola depois dos oito anos de
idade. Proibiram-nas de aparecer em público sem a presença de um parente
consanguíneo masculino e sem usar uma burca. Mulheres acusadas de quebrar estas
ou outras restrições sofreram punições corporais ou capitais severas, frequentemente
em público, trazendo humilhações e levando boa parte desta população a uma alta
incidência de distúrbios mentais[xiv].
Os talibãs também abrigaram movimentos
extremistas favoráveis a jihad e contrários ao ocidente, como o grupo Al-Qaeda,
estabelecido em 1988, mas cujas origens remontam a 1979, quando Osama
Bin Laden mudou-se temporariamente para o Afeganistão antes da invasão do
país pela União Soviética[xv].
Osama bin Laden, com fortes laços com outros grupos radicais sunitas em
todo o oriente médio, ajudou a organizar a resistência mujahidin no
Afeganistão desde essa época. Com o governo talibã instituído a partir de 1996,
Osama Bin Laden mudou-se do Sudão para o Afeganistão, onde estabeleceu no país
seu quartel general. O Al-Qaeda, antes de caráter local e organizado de forma
hierárquica, transformou-se em um movimento internacional, com a sede e paraíso
seguro no Afeganistão, de onde, através de franquia internacional e militantes espalhados
em vários países, organizava e financiava operações terroristas contra o
ocidente em nome da jihad.
A
Política norte-americana e a colaboração internacional no Afeganistão
Até agora, não entramos em detalhes sobre a
relação dos EUA com o Afeganistão. Voltando aos anos 1970, pode-se constatar
que os EUA demoraram a responder à Revolução Saur que colocou o Afeganistão
dentro da esfera direta de influência soviética. O presidente Jimmy Carter
se incomodou com o assassinato do Embaixador Adolph Dubs em Cabul (fevereiro
de 1979) e, embora não existam evidências, pode não ter sido uma mera
coincidência a chegada de Bin Laden ao Afeganistão e o assassinato de
Dubs[xvi]
naquele mesmo ano. A invasão soviética do Afeganistão, alguns meses depois (dezembro
de 1979), despertou aos norte-americanos suspeitas de que havia uma grande
estratégia soviética destinada a ocupar um porto no Oceano Índico e controlar o
fluxo de petróleo no Golfo Pérsico.
Todos estes fatores levaram o governo dos EUA a
apoiar os grupos islâmicos mujahidin de resistência à ocupação
soviética. Em 1980 o Governo Carter alocou US$50 milhões para os grupos mujahidin
e este apoio cresceu durante o Governo Reagan. Em 1985, os recursos alocados chegaram
a US$ 250 milhões, sendo que a Arábia Saudita alocava recursos em iguais
proporções, mas não para os mesmos grupos mujahidin. Os EUA,
particularmente, treinavam e apoiavam as forças mujahidin lideradas por Massoud,
apoio que também incluía a doação de armamento antimíssil e treinamento para seu
uso. Estes fatores foram cruciais no enfraquecimento das posições soviéticas e na
vitória dos grupos de resistência.
Após a retirada das tropas soviéticas em 1992,
iniciou-se o período de guerra civil entre as forças de Massoud e os
grupos mujahidin sunitas de resistência que, a partir de 1994, passaram
a ser liderados pelos talibãs. Entre 1994 e 1996, o apoio interno aos talibãs
foi fruto de uma mística sobre os atos de heroísmo do Talibã na defesa de sua
religião entre aldeias rurais que cresceu como um rastilho de pólvora e gerou
um recrutamento maciço de jovens convertidos à jihad em apoio às suas
fileiras.
Por outro lado, retiradas as tropas soviéticas,
o governo George Bush (pai) deixou de alocar fundos para as milícias do
Afeganistão, política que foi continuada ao início do governo do Presidente
Bill Clinton. Enquanto isso, outros países árabes, incluindo a Arabia
Saudita e o Paquistão, continuaram a doar quase US$ 400 milhões anuais para os mujahidin
afegãos que resistiam a Massoud, especialmente a partir de 1994 quando é
criado o movimento talibã[xvii].
Destaca-se o apoio dado pelo Paquistão que, ao ter largas faixas de seu
território e população fronteiriça de maioria sunita, falando a mesma língua
(pashtun), tinha fortes identidades étnicas e religiosas com os talibãs.
Assim, a falta de apoio financeiro dos Estados
Unidos às forças de Massoud entre 1992 e 1996 foi um grande erro
tático dos norte-americanos. A derrubada de Massoud e a ascensão dos
talibãs ao Governo do Afeganistão em 1996, com sua ampla permissividade às
ações terroristas do Al-Qaeda no país, representou um novo desafio para os EUA.
Em 1996 Osama Bin Laden mudou-se do Sudão para o Afeganistão com a
proteção dos talibãs, trazendo com ele cerca de 2 mil militantes do Al-Qaeda fiéis
e bem treinados. De lá, comandou várias ações de terrorismo internacional
planejadas pelo Al-Qaeda, as quais despertaram a preocupação dos órgãos de
inteligência norte-americanos e redirecionaram novamente o país para uma
política externa menos neutra e mais cautelosa em relação ao Afeganistão.
Ocorreu um modesto retorno ao financiamento norte-americano a algumas das
operações de resistência praticadas pela Aliança do Norte sob a liderança de Massoud,
especialmente a partir de 1998 após atentados terroristas praticados pelo
Al-Qaeda contra alvos norte-americanos. O interesse na colaboração com Massoud
para rastrear e eliminar o Al-Qaeda passou a ser essencial aos novos objetivos
de política externa, mas isto requereria muito mais recursos, táticas e
treinamento do que os que foram transferidos pela inteligência norte-americana
à Aliança do Norte até aquele momento.
Entre os atos terroristas realizados pelo Al-Qaeda
destacam-se, primeiramente, o bombardeio das embaixadas norte-americanas no
Kenya e Tanzânia, em 1998[xviii].
Esses ataques levaram os EUA a decretar sanções legais internacionais contra o
governo talibã, com o apoio do Conselho de Segurança da ONU. O Presidente Bill
Clinton, após os ataques às embaixadas norte-americanas, passou a exigir do
governo talibã a captura e extradição de Osama Bin Laden no Afeganistão,
mas nunca obteve uma resposta positiva. Seguiram-se outros atos terroristas,
como os ataques às embarcações USS The Sullivans (janeiro de 2000), e US
Cole (outubro de 2000), culminando com o conjunto de ações que configuraram a
derrubada das torres gêmeas do World Trade Center em New York City
e o ataque ao Pentágono no Estado de Virgínia (11 de setembro de 2001), com
mais de 3 mil vidas perdidas e prejuízos financeiros estimados em mais de U$1
trilhão.
A morte de Massoud ocorreu em 9 de
setembro de 2001, ou seja, dois dias antes do ataque às torres gêmeas e ao
Pentágono, que marcaram o trágico dia 11 de setembro daquele ano, considerado
um divisor de águas nos rumos da história mundial. Massoud havia alertado
meses antes ao Parlamento Europeu que o Al-Qaeda planejava um atentado terrorista
de proporções gigantescas em solo norte-americano, o que mostrou a capilaridade
do sistema de informação de que dispunha, mas certamente a inteligência
norte-americana não considerou o tema com a seriedade que deveria ter sido dada.
A guerra norte-americana contra o Afeganistão
começa na sequência dos ataques de 11 de setembro de 2001, sendo autorizada com
urgência pelo Congresso em 18 de setembro do mesmo ano. Naquele momento, o
Instituto Gallup realizou uma pesquisa de opinião internacional em 37 países,
dos quais 34 se mostraram favoráveis a impetrar sansões legais ao país que
levariam a captura e extradição dos membros do Al-Qaeda responsáveis pelo
atentado[xix],
previamente a implementação de soluções militares.
O Presidente George Bush (filho), antes
de tentar um ataque militar, reiterou o pedido feito pelo seu antecessor Bill
Clinton para captura e extradição de Bin Laden, o que foi uma vez mais
negado pelo governo talibã, deixando aos Estados Unidos a única opção de
declarar guerra ao Afeganistão para realizar a captura de Bin Laden. Em
7 de outubro de 2001, com o apoio do governo britânico, os Estados Unidos
lançaram a operação Enduring Freedon (liberdade duradoura) com ataques aéreos
às forças talibãs, contando com o apoio terrestre da Aliança do Norte às forças
especiais norte-americanas e levando à tomada do poder e a derrubada do governo
talibã em Cabul no dia 12 de novembro de 2001. Grande parte dos talibãs e do
Al-Qaeda escaparam pelas fronteiras com o Paquistão ou se esconderam em áreas
montanhosas remotas no país, onde passaram a organizar sua resistência. Em 2002
o líder talibã Mullah Mohamed Oman reorganiza o movimento de insurgência
contra as forças internacionais que ocuparam o país.
Em dezembro de 2001 o Conselho de Segurança da
ONU se incorporou ao esforço internacional de guerra contra os talibãs criando
uma força internacional de assistência e segurança. Em uma conferência
realizada em Bonn (Alemanha), escolheram Hamid Karzai como líder do
governo de transição que iria preparar o país para a realização de eleições
democráticas. Em 2003 o esforço de guerra passa a ser comandado pelas forças
militares das Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN)[xx].
O país volta a se chamar República Islâmica do Afeganistão, a partir de 2004,
quando foram realizadas eleições gerais que confirmaram, pelo voto popular, a
continuidade de Karzai como presidente do Afeganistão, onde permaneceu
até 2014.
A opinião pública, tanto norte-americana quanto
internacional, na sequência dos ataques terroristas às torres gêmeas e da negação
dos talibãs em aceitarem uma solução legal internacional, como a captura e
extradição de Bin Laden e outros membros do Al-Qaeda, passou a ser francamente
favorável aos ataques norte-americanos ao Afeganistão. No plano interno, pesquisas
de opinião realizadas em outubro de 2001 mostravam que 88% dos norte-americanos
eram favoráveis às ações militares realizadas pelas tropas norte-americanas. No
plano internacional, as pesquisas realizadas pelo Instituto IPSOS-Reid entre novembro
e dezembro do mesmo ano indicavam que a maioria da população do Canadá, França,
Alemanha, Itália e Grã-Bretanha apoiaram os ataques aéreos aos talibãs
realizados ao final de 2001 pelos norte-americanos, embora a maioria da população
em outros países, como Turquia, Espanha, China e Argentina a reprovassem.
A guerra das forças norte-americanas e
internacionais contra os talibãs, entre 2001 e 2021 foi complexa, intensa e
prolongada, tendo ido além das fronteiras, com as incursões realizadas em países
como o Paquistão. Foi a guerra mais longa em que se envolveram os norte-americanos.
Dela, segundo o Watson Institute of International and Public Affairs da
Universidade de Brown[xxi]
resultou a morte de cerca de 71 mil civis desde seu início até abril de 2021
(47 mil no Afeganistão e 24 mil no Paquistão). Cerca de 136 profissionais da
imprensa e 550 profissionais envolvidos em atividades humanitárias internacionais
foram assassinados. Adicionalmente, cerca de 6,3 mil militares norte-americanos
(de carreira e contratados), 1,1 mil militares de tropas aliadas e 78 mil soldados
e policiais afegãos perderam suas vidas nos conflitos. Soma-se ainda os 84 mil
guerrilheiros talibãs e de outros grupos de resistência mortos em combate. Às
perdas de vida, se somam os gastos diretos e indiretos de US$2,3 trilhões do
orçamento público norte-americano, sem contar os gastos realizados pelas tropas
aliadas, organismos internacionais e ajuda humanitária.
Outro aspecto importante é o tema da
integridade do governo afegão após a posse de Karzai e durante seu
mandato como presidente do país, entre 2001 e 2014. Boa parte do influxo
internacional de recursos externos foi consumido pela corrução da burocracia
pública e militar do país, fazendo com que em 2009, segundo os dados da
Transparência Internacional, o Afeganistão passasse a ser o segundo país mais
corrupto do mundo após a Somália. Com isso, aumentava a percepção internacional
de que os gigantescos fundos externos mobilizados para a ajuda ao país e para o
esforço de guerra estavam sendo desviados para fins de enriquecimento privado. Karzai
não foi reconduzido novamente e Mohammad Ashraf Ghani Ahmadzai foi
eleito, em fevereiro de 2014, presidente do país.
Os talibãs recebiam ajuda econômica e apoio (as
vezes militar) velado de países como o Paquistão, Arábia Saudita e outros da
esfera muçulmana sunita. A ação internacional em prol da guerra e da
reconstrução da governabilidade do país perdia sua influência na formação das
consciências que poderiam levar o Afeganistão a uma democracia nos moldes
ocidentais. Segundo pesquisas de opinião realizadas pela rede inglesa BBC, a aceitação
das forças internacionais pela população afegã caiu de 87% em 2005 para 69% em
2009.
Como resultado da guerra, o Al-Qaeda mudou suas
operações do Afeganistão para o Paquistão, entre 2002 e 2003, se estabelecendo
em áreas montanhosas nas cercanias da fronteira e ainda mais a noroeste, onde
se juntou a grupos terroristas do Kashmir, com operações voltadas para
realizar atentados na Índia. Ainda que os esforços internacionais contra o Al-Qaeda
e os talibãs no Paquistão não fossem tão intensos como no Afeganistão, tal fato
não impedia que continuasse o trafego livre de terroristas entre os dois países.
Do Paquistão, o Al-Qaeda seguia comandando muitos atentados terroristas ao
nível global com as ligações que estabeleceu com sua rede internacional de
terrorismo[xxii].
Mas a C.I.A. e outros órgãos militares de inteligência nos Estados Unidos realizaram
um bom trabalho de rastreamento de longo prazo que resultou no ataque e morte
de Osama Bin Laden pelas forças especiais norte-americanas no complexo
de Abbottabad (Paquistão), em 2 de maio de 2011, durante o governo Barack
Obama. A partir do 2014, foi detectada, além do Al-Qaeda, a presença
de militantes do ISIS, embora não tenha sido comprovada sua ligação com os
talibãs[xxiii].
Ainda que as tropas aliadas contassem com
recursos vultosos para o financiamento da guerra contra os talibãs, estes
também conseguem, até hoje, mobilizar muitos recursos, os quais, em sua maioria
proveem de taxas sobre a produção de papoula, tráfico de ópio e produção e
venda de heroína por laboratórios clandestinos existentes no país, sob domínio
dos talibãs. Estes recursos somavam, segundo estimativas, entre US$100 e US$400
milhões por ano. Os fundos que financiavam as operações dos talibãs também
provinham de taxas sobre a exploração ilegal de minerais, como lápis azule e
outros (cerca de US$50 milhões por ano) e do apoio financeiro externo clandestino
oriundo de países e de simpatizantes privados que somam algo em torno de US$500
milhões por ano. Estes recursos tem sido suficientes para financiar um exército
bem armado de 60 mil militantes talibãs[xxiv].
O contrabando de produtos ilegais nas fronteiras, especialmente de produtos de
tabaco para o Paquistão e Irã (dado que a produção e importação não era taxada
no Afeganistão), constituem outra fonte poderosa de financiamento para os
talibãs, com fundos que podem chegar a dezenas de milhões de dólares[xxv].
Este seria um dos motivos que tornaria a taxação de tabaco um dos temas que não
só beneficiária a população afegã, como reduziria os recursos do contrabando de
tabaco para financiar as ações dos talibãs[xxvi].
Políticas Sociais e a Condição Feminina no
Afeganistão: Precariedade, mas com Avanços
Apesar dos impactos negativos da guerra, ocorreram
melhoras significativas para o povo afegão, vindas com a intervenção das forças
internacionais, a partir de 2001. Do ponto de vista da saúde, entre 2001 e 2021,
a expectativa de vida ao nascer da população, que ainda é baixa, aumentou de 56
para 64 anos. A taxa de mortalidade materna se reduziu pela metade e 89% da população
urbana passou a ter acesso a água potável em 2021, comparado com 16% em 2001. A
taxa de mortalidade de menores de 5 anos caiu de 191 para 50 por 1.000 nascidos
vivos de 2006 a 2018, enquanto, ao mesmo tempo, a proporção de unidades de
saúde com funcionários do sexo feminino aumentou.
Os partos assistidos por profissionais de saúde
qualificados entre o quintil de renda mais baixa aumentaram de 14,9% para 58,8%
entre 2003 e 2018. A cobertura vacinal de PENTA 3 (uma combinação de cinco
vacinas em uma, cobrindo poliomielite, difteria, coqueluche, tétano, haemophilus
influenzae tipo b e hepatite B) dobrou entre 2002-2018 de 29% para 61%
entre crianças com idades entre 12-23 meses no quintil de renda mais baixa[xxvii].
A taxa de casamento infantil se reduziu em 17% entre
2001 e 2021, permitindo o aumento da frequência à escola, especialmente para
meninas. Em 1990, 34% dos estudantes secundários no Afeganistão eram do sexo
feminino. Esta proporção chegou a 17% em 2005, após anos da dominação talibã,
mas se recuperou progressivamente até 2019, quando voltou a alcançar os 36%. Em
1990, cerca de 56% dos professores primários eram do sexo feminino, proporção
que se reduziu para 10% em 2000, durante o regime talibã. Mas em 2019, a proporção
de professores primários do sexo feminino havia crescido para 36%. Vale ainda
destacar que a proporção de meninas frequentando cursos de treinamento
vocacional aumentou de 3,6% em 2004 para 13,1% em 2019, mas a participação das
mulheres na força de trabalho ainda é persistentemente baixa, havendo crescido
de 21% para 25% entre 2012 e 2019.
Como consequência de as mulheres não poderem
sair de casa e serem atendidas por médicos do sexo masculino pelos costumes
talibãs, as taxas de mortalidade materna no Afeganistão eram de 1450 por 100
mil nascidos vivos em 2003, mas essa proporção se reduziu para 638 em 2018,
representando uma queda significativa, ainda que estejam entre as maiores taxas
mundiais de mortalidade materna. A porcentagem de mulheres gravidas recebendo
pelo menos uma consulta pré-natal, que alcançava 16% em 2004, aumentou para 65%
em 2019.
As taxas de fecundidade adolescentes, que
ficaram estacionadas entre 161 filhos por 1000 adolescentes de 15 a 19 anos
entre 1990 e 2000, começaram a cair, alcançando 127 filhos em 2010 e 61 filhos
em 2019. A cobertura de meios contraceptivos ainda é baixa, mas aumentou de 4%
em 2000 para 17% em 2018.
O número
de crianças frequentando escola aumentou de 1,2 para 8,2 milhões entre 2001 e 2013,
e no caso específico de meninas, aumentou de 50 mil em 2001 para 3,2 milhões,
em 2013. As taxas de alfabetização aumentaram de 8% para 43% no mesmo período.
Mesmo assim, 44% das crianças entre 7 e 17 anos não frequentavam escola em 2021.
Mas a consciência das mulheres sobre seu estado
de opressão, mesmo após quase uma década e meia da derrubada dos talibãs, ainda
era muito baixa. Segundo dados do Banco Mundial, a partir de uma pesquisa
realizada em 2016, 59% das mulheres do país consideravam que seus maridos
tinham direito de agredi-las se elas levantassem a voz para eles, e 67%
acreditavam que seus maridos poderiam dar-lhes uma surra se elas saíssem para a
rua sem lhes pedir permissão.
Desde 2001, 5,7 milhões de refugiados retornaram
ao país, mas ainda se estimava em 2021 a existência d 2,6 milhões de
refugiados, muitos dos quais ligados às famílias de talibãs que imigraram para o
Irã ou Paquistão. A guerra civil tornou o Afeganistão um dos países com maior
deslocamento interno de população do mundo, com uma estimativa de 500 mil sendo
deslocados a cada ano. Só na primeira metade de 2021, se estimava que cerca de
200 mil pessoas haviam migrado internamente fugindo das regiões ocupadas pelos
talibãs.
A economia do Afeganistão, ao longo dos 20 anos
que sucedem a derrota dos talibãs em 2001, não logrou ter um projeto de
desenvolvimento que permitisse ao país retomar um crescimento capaz de dar
melhores condições de vida a sua população. A economia cresceu nos primeiros
anos, fazendo com que a renda per-capita tenha crescido de US$149 para US$642
entre 2002 e 2012. No entanto, a renda per-capita declina nos últimos 8 anos, reduzindo-se
para US$509 em 2020. O país tem grandes potenciais de crescimento, por ser uma área
de passagem. Estradas entre Cabul e o golfo pérsico facilitariam a exportação
dos produtos minerais e, além do mais, o país ocupa uma posição estratégica na “rota
da seda”, planejada para ligar, por via rodoviária a China e a Europa. Mas
nenhum investimento desta natureza se realizou nos últimos vinte anos.
A China, desde 2010 tem realizado grandes
investimentos no país, nas áreas de mineração e rodovias e tem interesse e
potencial para contribuir para a estabilidade do país[xxviii],
mas os Estados Unidos não acompanharam investimentos similares.
A deterioração política dos últimos anos
Por muitos desses motivos, a opinião pública
internacional e nacional, desde a segunda metade da década passada, tem sido
contrária a continuidade da guerra. Uma pesquisa de opinião realizada em 47
países em junho de 2007[xxix]
demonstrou que em 44 deles a maioria já se opunha a continuidade das operações
da OTAN no Afeganistão. Com isso, entre 2009 e 2011 muitos países aliados
começaram a reduzir os contingentes de tropas na OTAN, entre eles Coréia do
Sul, Canadá, Holanda, Japão, Itália, Reino Unido, Polonia e França.
Em 2010, 60% dos representantes do partido
democrata nos Estados Unidos votaram a favor de organizar um plano de retirada
das tropas norte-americanas do Afeganistão e realizaram pressões para a redução
dos gastos militares no orçamento federal em 2011. Mas mesmo assim, o Presidente
Barack Obama continuou a enviar mais tropas ao país. A morte de Osama Bin
Laden pelas forças especiais no Paquistão trouxe para a população
norte-americana a sensação de que a guerra estava sendo ganha, mas este
sentimento durou pouco. Neste mesmo ano, líderes mundiais reunidos em Bonn
discutiram o futuro da guerra e o processo de reconstrução do país e
consolidação da democracia, com um calendário de retirada das tropas.
Em 2014 Barack Obama declarou planos
para o término da guerra e retirada das tropas do Afeganistão. Mas o
recrudescimento dos ataques dos talibãs às tropas nacionais afegãs, da NATO e norte-americanas
prolongou a presença dos norte-americanos no país. Com a posse de Donald
Trump em 2017, o governo norte-americano passou a reconhecer que os Estados
Unidos estavam perdendo a guerra, mas considerava que seus objetivos já tinham
sido parcialmente alcançados. Ele reconhecia a frustação do país em continuar
perdendo vidas de nacionais e investindo recursos públicos numa guerra sem fim,
mas considerou que havia a necessidade de realizar com cautela um plano de
retirada para não criar um vácuo de poder e derrubar por terra os esforços até
então realizados no país. Entre 2018 e 2019 Trump inicia e conduz conversações
de paz com as lideranças talibãs. Eleições no Afeganistão foram marcadas e
adiadas sucessivamente, mas se realizaram em fevereiro de 2020. Ashraf Ghani
foi reeleito, mas com apenas 50,6% dos votos, em meio a contestações de fraudes
por parte dos candidatos de oposição.
A instabilidade política aumentou a partir
deste momento mas, uma vez que Ghani foi reeleito, Donald Trump tenta, ainda em
fevereiro de 2020, acordos de pacificação estabelecendo seu compromisso de
retirada das tropas norte-americanas do país em maio de 2021 e anistia aos crimes de guerra dos talibãs em troca de uma estabilidade política mais duradoura. Os acordos de Trump abordaram
quatro questões: (i) redução da violência; (ii) retirada de tropas estrangeiras;
(iii) negociações entre os talibãs e o governo do Afeganistão, visando manter a
estabilidade democrática, e; (iv) e garantia de que o Afeganistão não se
tornará novamente um refúgio para terroristas. O acordo foi apenas o primeiro
passo para encerrar a guerra de mais de dezoito anos que matou mais de 157.000 com
custos para os Estados Unidos superiores a US $ 2 trilhões.
Consideradas as condições do acordo negociadas
por Donald Trump, verifica-se que a única que avançou em seu cumprimento
foi a retirada das tropas estrangeiras do país, a partir do governo Joe
Biden. As demais condições que dependiam da vontade dos talibãs não
avançaram e a violência dos talibãs tem se intensificodo nos últimos 18 meses. Os talibãs não tentaram
conversações sérias para alcançar um acordo de paz com o gabinete do presidente
reeleito Ashraf Ghani. Os protestos da população e ações dos talibãs
continuaram diante de um governo fraco e desmoralizado, e não houve o adequado
monitoramento, tanto por parte do governo norte-americano quanto pelas autoridades do Afeganistão, em
realizar medidas concretas para fazer com que os talibãs cumprissem sua parte
do acordo. Mas mesmo assim, o Governo Donald Trump transferiu para seu sucessor o
compromisso de retirada das tropas em maio de 2021.
Joe Biden, uma vez eleito em fins de 2020, reafirmou em
14 de abril de 2021 que manteria os compromissos de retirada total das tropas
norte-americanas do Afeganistão, antes de 11 de setembro do mesmo ano,
iniciando, em 1º de maio, a progressiva retirada dos efetivos militares do país. No
dia 6 de julho, a maior base aérea norte-americana no Afeganistão (Bagram Airfield)
é evacuada. No entanto, os talibãs não respeitaram as tratativas de acordo de paz, como
era esperado por alguns analistas, e em agosto o governo de várias capitais provinciais
começou a cair nas mãos dos talibãs, ao mesmo tempo em que aumenta o cerco dos
guerrilheiros à capital Cabul. Em 15 de agosto de 2021 o Presidente Ashraf
Ghani abandona o país, sob a alegação de que queria evitar um banho de
sangue, antes da tomada de Kabul pelos grupos guerrilheiros talibãs. Parte do
exército nacional afegão e de suas forças especiais se desmancha, seja pela deserção,
seja pela incorporação voluntária aos quadros talibãs.
Joe Biden, mesmo antes de ser candidato a presidente,
sempre foi favorável à retirada das tropas americanas do Afeganistão e, ao
manter os compromissos dos acordos de Donald Trump com os talibãs,
estava seguindo, também, seus próprios instintos e convicções. Mas foi surpreendido
pela tomada rápida do país pelos talibãs, os quais não mais respeitariam as
regras democráticas instituídas no país. A população norte-americana também
tinha interesse na retirada das tropas, mas não esperava que o país fosse
entregue tão rapidamente nas mãos dos talibãs, deixando a população
norte-americana, a de outros países e os aliados afegãos que trabalharam no
processo de reconstrução do país em precária situação, sem um plano consistente
para sua retirada do país.
Este quadro ainda aumenta os riscos de que o
último dos compromissos firmados por Donald Trump com os acordos de paz com os
talibãs – evitar o que o país volte a ser um refúgio para terroristas - não
seja cumprido. Novos ataques terroristas
pela presença do EI e do Al-Qaeda poderão voltar, dado que grupos terroristas certamente
terão mais segurança e proteção para sediar suas operações no Afeganistão. E o elemento
principal desta tragédia poderá será a reversão dos ganhos e conquistas da
população feminina, logrados nos últimos 20 anos.
As últimas notícias e imagens registradas da
tomada de Cabul, da tentativa de fuga de milhares de pessoas do país, da
violência imposta pelos talibãs no entorno do Aeroporto de Cabul e a
dificuldade do governo norte-americano em organizar uma saída pacífica e sem
riscos são apenas uma amostra do que poderá acontecer nos próximos anos
no país sob o governo desordenado e antidemocrático dos talibãs. E apesar das
declarações de líderes locais de que respeitarão direitos das mulheres e de opositores,
as práticas recentes parecem não demonstrar isso. Uma vez que os
norte-americanos e o ocidente perdem interesse em continuar a investir em
reformas políticas no Afeganistão, é possível que os talibãs se voltem a acordos
econômicos com a China e com os países árabes sunitas sem que recebam destes
parceiros pressões políticas para reestabelecer, seja a democracia, seja a
igualdade de gênero.
NOTAS
DE FIM DE TEXTO
[i] Um detalhamento deste tema pode ser
encontrado em Al-Manteeqi, I., “A Woman Under Sharia: 8 Reasons Why Islamic
Law Endangers Women: An essential, scholarly comparison of the rights of women
under Sharia and in the West”, in https://counterjihad.com/women.
[ii] Maomé, ao ouvir a notícia de que o povo da Pérsia havia feito da filha de Khosrau sua rainha, declarou: “Nunca sucederá uma nação que faz de uma mulher sua governante”.
[iii] Detalhes sobre este período da história podem ser vistos em Rubin, M. (2002), Who Is Responsible for the Taliban? Artigo publicado pelo The Washington Institute for Near East Policy, Washington DC, Mars 1, 2002.
[iv] Além do mais, Daoud estava convencido de que laços mais estreitos e apoio militar da União Soviética permitiriam ao Afeganistão assumir o controle das terras pashtun no noroeste do Paquistão. No entanto, Daoud, também estava ostensivamente comprometido com uma política explícita de não alinhamento aparente com os soviéticos e ficou inquieto com as tentativas soviéticas de ditar a política externa do Afeganistão. Com isso, as relações entre os dois países se deterioraram.
[v] Desde os anos 1960´s o PDPA foi um partido dividido em várias facções, sendo a facção Khalk (dominada por Taraki) e a facção Parshami (dominada por Babrak Kharmal) as principais. Mas apesar da facção Parshami do PDPA apoiar o golpe de Daoud, seus representantes foram traídos e começaram a ser perseguidos. Em 1978, membros proeminentes desta facção foram assassinados pelo governo e com isso, os líderes do PDPA temiam que Daoud estivesse planejando exterminar todos eles, especialmente porque a maioria já havia sido presa pelo governo pouco depois do golpe. No entanto, vários oficiais militares do PDPA conseguiram permanecer em liberdade e, dessa forma, organizar um golpe militar em 1978.
[vi] Também da facção Khalk.
[vii]Ahmad Shah Massoud foi líder mujahidin, político e comandante de guerrilha durante a resistência contra a ocupação soviética entre 1979 e 1989. Entre 1992 e 1996 ele liderou o governo, especialmente sua ala militar, contra milícias rivais. Mas após a tomada do poder pelos talibãs, ele se refugiou nas montanhas e reorganizou suas milícias, voltando a ser o principal comandante da oposição contra o regime até seu assassinato por forças do Al-Qaeda em 2001.
[viii] Cerca de 15 mil soviéticos foram mortos e 54 mil foram mutilados pelas guerrilhas, em decorrência de ferimentos acidentes ou doenças. A taxa de hospitalização entre os militares soviéticos era elevada, visto que 470.000 funcionários foram hospitalizados representando quase 76% do contingente militar. Ao todo, 67% dos soviéticos que serviram no Afeganistão precisaram de hospitalização em função de ferimentos acidentes e doenças transmissíveis. A escassez de água potável, práticas de campo anti-higiênicas, exposição a pragas e doenças transmissíveis, rações alimentares desequilibradas, bem como a dependência de itens comprados localmente, produzidos sem regras aceitáveis de higiene, eram altos riscos para a saúde.
[ix] Os talibãs surgiram como movimento no Afeganistão em 1994, mas sua ideologia remonta a história do islamismo na Índia durante a dominação inglesa do país. Para responder à opressão britânica, a comunidade islâmica abriu uma escola em 1866, por ex-alunos da madraça de Delhi, em Deoband, com o objetivo de doutrinar jovens muçulmanos com valores islâmicos tradicionais e gerar entre eles ódio intenso contra os britânicos e todos os estrangeiros com influências não islâmicas. A duração normal dos estudos era de dez anos e seus graduados seriam bem versados no Alcorão e reconhecidos em suas comunidades de origem como Mulás. Desde o início, a escola de Deoband fez uma distinção entre o conhecimento "revelado" ou sagrado do islã e o conhecimento "humano" ou secular. A escola excluiu todo aprendizado que não fosse diretamente islâmico ao rejeitar ser tolerante com outras tradições religiosas como o hinduísmo da Índia e o cristianismo dos missionários britânicos, proibindo a educação ao estilo ocidental e o estudo de quaisquer assuntos não diretamente relacionados ao Alcorão. Segundo a escola, o Islã precisava ser purificado desses elementos estranhos e viver a tradição islâmica pura e para isso eles abraçaram o Taqlid (aceitação das antigas interpretações) e rejeitaram o Ijitehad (reinterpretação dos preceitos islâmicos para acomodar os tempos de mudança). A filosofia Deoband (adotada pelos talibãs) usa a proibição de comportamentos que podem levar ao pecado de forma preventiva. Por exemplo, o fato de uma mulher não se cobrir completamente em público pode levar a imoralidade imediata e, para prevenir, este ato imoral ele não é permitido. O mesmo raciocínio leva a proibição de que as mulheres tenham tratamento médico, dado que os exames físicos e de toque poderiam levar ao médico a deseja-las e isso, por definição, torna o atendimento médico de mulheres por homens uma prática proibida. Outro princípio diz que o que é “honroso” deve ter precedência sobre o que é “permitido”. Por exemplo, quando uma pessoa é insultada por outra, é "permissível" que a pessoa insultada tire a vida da outra, mas a coisa "honrosa" a fazer é perdoar. A grande discussão é definir o que é “honroso” no pensamento talibã, dado que muitas vezes as normas étnicas e tribais se tornam fatores para decidir o que é “permitido” e o que é “honroso” em cada aldeia ou localidade. Como é praticamente impossível separar, o que é um valor "islâmico" do que é um valor "tribal", as posições e práticas religiosas puristas dos talibãs colocam-se em conflito todo o tempo, não só em relação ao ocidente, mas também entre os próprios afegãos de outras tribos, regiões e etnias islâmicas, tornando os conflitos religiosos permanentes e intermináveis. Mais detalhes sobre a relação entre talibãs e a ideologia Deoband podem ser vistos em: https://www.globalsecurity.org/military/library/report/2001/Deobandi_Islam.pdf
[x] Uma informação detalhada sobre esses pontos pode sem encontrada em Grad, Marcela (2009) “Massoud: An Intimate Portrait of the Legendary Afghan Leader (March 1, 2009 ed.). Webster University Press.
[xi] O Paquistão apoiou em grande escala os talibãs em sua guerra civil contra as forças da resistência, agora representada em sua maioria pela Aliança do Norte, sob a liderança de Massoud. Segundo Rubin (2002), o Paquistão, apesar de oficialmente negar qualquer apoio aos talibãs, chegou a providenciar até 5 mil recrutas para apoiar os Talibãs contra as forças de Massoud durante o período entre 1996 e 2001.
[xii] Mullah Mohamed Omar, líder supremo dos talibãs, morreu em 2013 por tuberculose. Mas sua morte somente foi divulgada dois anos depois, em 2015, sucedendo-o nesta liderança o Mullah Akhtar Mansoor.
[xiii] Muitas informações a este respeito foram coletadas num documento do Departamento do Estado Norte-Americano intitulado “Report on the Taliban War Against Women”, que pode ser acessado no link: https://2001-2009.state.gov/g/drl/rls/6185.htm
[xiv] United States Congress, “Afghan Women and Girls: Status and Congressional Action” in “In Focus – Congressional Research Service”, Updated in August 12, 2021, Link: https://crsreports.congress.gov/product/pdf/IF/IF11646
[xv] Como grupo terrorista, o Al-Qaeda sempre teve como prioridade a desestruturação das sociedades dominantes ocidentais – particularmente os Estados Unidos – como forma de abrir espaço para o islamismo radical. Entre as ações terroristas realizadas pelo Al-Qaeda antes da transferência de sua sede para o Afeganistão em 1996 se destacam a tentativa de ataque ao Hotel Gold Mohur no Yemen (dezembro de 1992), onde se presumia que tropas norte-americanas estavam hospedadas de passagem para a Somália, o primeiro bombardeio ao World Trade Center em Nova York (fevereiro de 1993), e a explosão de estabelecimentos em Riad (Arábia Saudita (fevereiro de 1995), onde o exército norte-americano treinava a polícia saudita.
[xvi] Adolph Dubs havia sido nomeado embaixador dos EUA no Afeganistão meses após o golpe conhecido como a Revolução Sour, em 1978, com apoio dos soviéticos. Ao trafegar da embaixada para sua residência em 14 de fevereiro de 1979 (mesmo dia em que terroristas iranianos atacaram a embaixada norte-americana em Teerã), seu carro foi interceptado por quatro terroristas que o sequestraram e o levaram para o Hotel Serena em Cabul. Os sequestradores exigiam que Dubs intervisse para a libertação de extremistas islâmicos que estavam presos pelo governo de Taraki, mas a polícia afegã, mesmo contra as orientações da embaixada norte-americana que exigiu cautela, resolveu assumir a negociação com os terroristas e acabaram se precipitando, ao invadir inadvertidamente o Hotel Serena, o que levou os sequestradores a assassinarem o embaixador antes de serem presos. As investigações da polícia afegã sobre o caso nunca chegaram a ser reveladas para os norte-americanos e nunca foram concluídas, o que levou o Governo Jimmy Carter a se revoltar com a inépcia do governo e a falta de colaboração dos soviéticos. Por este motivo, o apoio e a ajuda externa norte-americana ao Afeganistão foram reduzidos, sendo extintos a partir do momento em que a União Soviética interviu no país em dezembro de 1979.
[xvii] Ver Rubin (2002).
[xviii] O Al-Qaeda é responsável por um grande conjunto de ações terroristas prévias a este período, destacando-se sua participação na guerra da Somália, em 1991, na guerra civil do Afeganistão entre 1992-1996, em insurgências no Yemen em 1996 e na própria guerra civil entre os talibãs e a Aliança do Norte, entre 1996 e 2001.
[xix] Segundo esta pesquisa, os únicos três países em que a opinião pública se mostrou favorável a uma intervenção militar no Afeganistão, antes de tentar soluções legais, foram Estados Unidos, Israel e Índia.
[xx] A OTAN é um acordo militar internacional formado por 28 países europeus e dois da América do Norte (Estados Unidos e Canadá). Depois que a OTAN assume o comando da guerra, uma parte das forças militares dos EUA passam a estar sob seu comando, mas a vasta maioria das tropas militares no país continuaram a ser administradas pelas forças armadas norte-americanas.
[xxi] Link: https://watson.brown.edu/costsofwar/figures/2021/human-and-budgetary-costs-date-us-war-afghanistan-2001-2021
[xxii] Entre as operações do Al-Qaeda após a invasão das forças da norte-americanas e da OTAN em 2001, destacam-se; (i) a participação em ações terroristas no Kuwait a uma embarcação militar norte-americana, na Malásia e no Quênia (todas em 2002), (ii) no Norte da África (região conhecida como Maghreb), desde 2002 até o presente, envolvendo países como Argélia, Chad, Mali, Mauritânia, Marrocos, Niger e Tunísia, em Jakarta-Indonésia (2003), (iii) a resistência durante a guerra do Iraque, entre 2003 e 2011, (iv) as ações terroristas na Região noroeste do Paquistão (desde 2004), na Arábia Saudita e Turquia (2003), no Catar e na Indonésia (2005) e na Região noroeste do Cáucaso (desde 2009), (v) a participação na guerra da Síria (desde 2011) e (vi) a participação na intervenção da Arábia Saudita no Yemen (desde 2015). Destacam-se ainda as participações nos países do Ocidente, como em Londres (2005) e na França (2015), somente para citar os casos mais conhecidos.
[xxiii] O ISIS (Islamic State of Irak and Syria), também conhecido pelo seu acrônimo em árabe – Daesh - foi criado em 1999, mas ao se internacionalizar, mudou seu nome em 2014 para Estado Islâmico (EI). A ideologia que fundamenta a ação deste grupo terrorista é um híbrido de salafismo ou jihadismo salafista e fundamentalismo islâmico sunita. Mas embora afirme aderir à teologia salafista as posições do EI são contrárias às interpretações salafistas tradicionais, bem como contra as posições da maioria das escolas de direito sunitas, e raramente defendem a adesão aos estudos e manuais islâmicos, preferindo derivar suas decisões com base numa interpretação própria do Alcorão e das tradições muçulmanas, baseadas nos escritos do teórico radical da Irmandade Muçulmana egípcia Sayyid Qutb. A Irmandade Muçulmana iniciou a tendência do islamismo político radical no século XX, buscando o estabelecimento gradual de um sistema islâmico abrangente governado pela sharia. Ainda que tenha presença no Afeganistão a partir de 2014, e que, como o Talibã, seja composto por uma ideologia sunita radical, o EI tem fortes divergências ideológicas com os talibãs e com o Al-Qaeda. Para o EI, o principal objetivo da jihad é derrubar os governos islâmicos que não adotam o islamismo original de Maomé e substituí-los por califatos, sem dar prioridade à intervenção nos países ocidentais, ou ter como alvo os Estados Unidos. Ver a esse respeito a matéria publicada no link https://nationalinterest.org/feature/taliban-vs-isis-the-islamic-state-doomed-afghanistan-13153
[xxiv] Ver matéria publicada por Azami, Dawood (2018) Afghanistan: How does the Taliban make money, in BBC News, 22 de dezembro de 2018, Link: https://www.bbc.com/news/world-46554097
[xxv] Ver Latif, A. & Willson, K. (2009), The Taliban and tobacco, publicado pelo site do International Consortium of Investigative Journalism em 29 de junho de 2009, Link: https://www.icij.org/investigations/tobacco-underground/taliban-and-tobacco/
[xxvi] Ver Medici, A. et al, (2019), Options for Tobacco Taxation in Afghanistan, Link: https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/handle/10986/32070/Options-for-Tobacco-Taxation-in-Afghanistan.pdf?sequence=1&isAllowed=y
[xxvii] Ver detalhes sobre resultado dos projetos do grupo de saúde do Afeganistão do Banco Mundial em https://www.worldbank.org/en/results/2020/10/23/delivering-strong-and-sustained-health-gains-in-afghanistan-the-sehatmandi-project. Outros dados podem ser vistos na publicação “Progress in the Face of Insecurity: Improving Health Outcomes in Afghanistan”. Link: https://documents1.worldbank.org/curated/en/330491520002103598/pdf/123809-WP-PUBLIC-MARCH6-530AM-14846-WB-Afghanistan-Policy-Brief-WEB.pdf
[xxviii] Em 18 de agosto de 2021, países como o Paquistão, China, Arábia Saudita, Rússia e Emirados Árabes foram os primeiros a declarar que poderão reconhecer o novo governo talibã.
[xxix] A pesquisa foi realizada pelo Pew Research Center, que é um think-tank não partidário independente localizado em Washington DC.
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