Ano 18, Número 144, Fevereiro de 2024
No dia 29 de maio de 2023, o presidente do
Brasil, Luís Ignacio Lula da Silva, ao convidar seu admirado amigo Nicolás
Maduro, autoridade máxima do governo venezuelano, para uma reunião bilateral
entre os dois países em Brasília, deu a entender, em seu discurso público de recepção
ao amigo, que a democracia prospera no país vizinho, e condenou àqueles que
consideram a Venezuela uma ditadura, definindo-os como construtores de uma
falsa narrativa. Dessa forma, ficou claro para todos que Lula considera como democrático na Venezuela, um governo que assumiu o controle do poder legislativo por meios
autoritários e subordinou o poder judiciário aos seus interesses e caprichos. Será essa a
sua receita ideal de democracia?
O que de fato ocorre é que, mantendo eleições
de fachada, os observadores internacionais documentaram inúmeros fatos que
demonstram a falta de transparência do que se chama de eleições na Venezuela
desde o início do presente século. Nos últimos 25 anos registaram-se mais de 15
mil detenções políticas de indivíduos que tentaram manifestar-se livremente ou
que eram candidatos da oposição nas eleições em todos os níveis de governo, e a
Human Rights Watch – uma instituição internacional de
defesa dos direitos humanos – denunciou a repressão e a tortura de presos
políticos e processos criminais contra civis em tribunais militares.
A subordinação do governo e dos cidadãos aos
interesses de uma cleptocracia autoritária na Venezuela gerou um empobrecimento
recorde da sua população, com o regresso da fome e das doenças endémicas
anteriormente erradicadas. Como consequência, estima-se que em 2024, quase 8
milhões de venezuelanos tenham deixado o país desde o início do Governo Chaves,
tendo a maioria imigrado para outros países latino-americanos.
Mas quais são as consequências do que Lula
considera “democracia” na Venezuela no sistema de saúde daquele país e na saúde da sua
população? Para falar sobre este tema convidamos uma das maiores autoridades do
país em questões de política de saúde - Dr. Marino J. González R.
Suas áreas de especialização são: políticas
públicas, políticas sociais e políticas de saúde. Desde 1999 dirigiu mais de 50
projetos de pesquisa e assistência técnica. Publicou 149 trabalhos
especializados relacionados com políticas públicas, políticas sociais,
políticas de saúde e economia da saúde. Até o momento, orientou 23 teses de
doutorado concluídas e 17 projetos de mestrado em políticas públicas. Foi
consultor da Organização Mundial da Saúde (OMS), Organização Pan-Americana da
Saúde (OPAS), Banco Mundial, BID, CEPAL, UNFPA e CAF. Tem experiência como
consultor internacional no Equador, Paraguai, Honduras, República Dominicana,
Guatemala, México e Panamá. Foi presidente do Capítulo Venezuela da Sociedade
Internacional de Farmacoeconomia e Pesquisa de Resultados (ISPOR) e membro do
Conselho de Administração da “Federação para Cooperação Internacional de
Centros de Pesquisa de Sistemas e Serviços de Saúde (FICOSER)” entre 1990-1994
e entre 2002-2006.
Além disso, é doutor pela Universidade Central
da Venezuela e possui especialização em Saúde Pública pela mesma universidade e
mestrado em Ciência Política pela USB, além de especialização em Políticas
Públicas pela Universidade do Colorado em Boulder, Estados Unidos. Ele
completou seu doutorado. na Escola de Pós-Graduação em Assuntos Públicos e
Internacionais (GSPIA) da Universidade de Pittsburgh, Estados Unidos. Com vocês
as palavras do Dr. Marino Gonzáles.
Monitor de Saúde (MS) – Relatórios do início da
década passada mostram que o governo venezuelano corroeu a infraestrutura de
saúde do país, ameaçando a saúde pública de seu povo. Por exemplo, entre 2009 e
2015, a taxa de mortalidade infantil aumentou de 14,4 para 20,2 por 100 nascidos-vivos.
As taxas de mortalidade materna, estimadas em 92 por 100 mil nascidos vivos em
2000, atingiram, segundo estimativas da OPAS e da UNICEF, 259 por 100 mil
nascidos vivos em 2020. A taxa de crianças com baixo peso ao nascer aumentou de
8,7% para 9,7%, entre 2003 e 2017. Mas desde 2016, o Ministério da Saúde
venezuelano deixou de publicar estatísticas cruciais de saúde pública. Diante
do apagão de dados estatísticos, como podemos, ainda que externamente,
monitorar o desastre de saúde pública causado pela ditadura de Chaves-Maduro no
país? Existem instituições da sociedade civil interessadas em monitorar o
estado de saúde da população venezuelana?
Marino González (MG) - Para entender o que acontece com
os dados na Venezuela, o contexto político e governamental é muito importante.
Nos últimos 25 anos, a Venezuela sofreu uma deterioração significativa nas
capacidades democráticas, especialmente nas responsabilidades governamentais.
Esta deterioração manifesta-se de forma muito perceptível, mas não
exclusivamente em seu impacto no Estado de direito e na ausência de equilíbrio
de poderes, mas principalmente no escasso respeito pelos processos que garantem
os Direitos Humanos. Assim, a Venezuela tem atualmente indicadores muito baixos
de governança democrática no cenário global.
Nessas condições que se agravaram nos últimos
anos, o monitoramento e a qualidade das políticas públicas assumem importância
absolutamente secundária para a gestão governamental. Assim, o que o país
construiu durante décadas em termos de qualidade dos sistemas de medição social
foi, em grande parte, perdido. É por isso que não existe informação regular e
de qualidade sobre aspectos básicos das políticas de saúde. Os números de
mortalidade não são publicados desde 2016, mas os dados demográficos não são
atualizados desde 2012 (quase 12 anos). A última informação semanal sobre
doenças de notificação obrigatória foi publicada no final de 2016 (sete anos).
Perante estas imensas lacunas de informação, há
mais de 10 anos, iniciativas têm sido geradas por universidades, organizações
da sociedade civil, centros de investigação e empresas de monitoramento da
opinião pública, com o objetivo de mitigar, em certa medida, estas faltas na produção
de informações para avaliação de políticas. Obviamente, estas iniciativas estão
sujeitas a restrições de recursos, razão pela qual muitas vezes não são tão
completas e regulares. É claro que desempenham um papel fundamental numa
situação em que o sector público praticamente abandonou as suas funções
constitucionais de garantir as melhores políticas para os cidadãos.
MS – A eliminação progressiva dos processos
de vigilância sanitária e epidemiológica na Venezuela aumentou os surtos de
doenças transmissíveis no país em proporções alarmantes, ao mesmo tempo que desmontaram
as estratégias de vacinação para doenças evitáveis, como sarampo, difteria e
tétano. Em 2016 e 2017, a Venezuela teve a maior taxa de aumento da malária no
mundo e as taxas de tuberculose em 2015 foram as mais altas do país em 40 anos.
Como está essa situação atualmente? Existe interesse ou vontade política para
melhorar a saúde da população mais pobre e desfavorecida? Seria o desinteresse
pela saúde dos mais pobres uma estratégia para eliminar a população pobre que
não se sente representada pela ditadura venezuelana e que não tem condições de
imigrar para outros países?
MG – O governo iniciado em 1999, e que continua até
hoje, teve o combate à pobreza como uma de suas principais mensagens. Este
longo período de maior empobrecimento que se seguiu no país é uma demonstração
de que o governo não tinha uma estratégia moderna e inteligente para corrigir
os desequilíbrios de desenvolvimento. A falsa premissa de que era possível
concentrar a riqueza no Estado e que, portanto, tudo se resolveria, está no
centro deste fracasso monumental. Já em 1999 se sabia que os países não melhoram
porque o Estado absorve todas as funções políticas, económicas e sociais.
Esta é a razão pela qual a Venezuela registou o
maior aumento na proporção de agregados familiares em situação de pobreza
extrema, atingindo 75% em medições de inquéritos de elevada qualidade técnica.
Este aumento da pobreza começou antes da hiperinflação iniciada em 2017 e
aumentou ainda mais ao longo de todo o período de hiperinflação (um dos mais
longos relatados no mundo). Portanto, pode-se dizer, com toda a propriedade,
que não houve vontade política nem capacidade técnica e institucional para
superar a pobreza no país. A evidência da deterioração social e económica da
Venezuela é a mais notável dos últimos cinquenta anos no mundo. Infelizmente,
eles são visíveis. A migração de mais de 7 milhões de venezuelanos de um total
de 30 milhões é a maior prova deste extraordinário desastre na gestão pública
do país no último quarto de século. É realmente dramático.
MS – Há algum tempo que a Venezuela utiliza a
estratégia de importar médicos de família de Cuba, remunerando o país com
petróleo. Muitos afirmam que a principal função dos médicos de família (ou
médicos de bloco) em Cuba tem sido, pelo menos no passado, uma função de
vigilância e propaganda política, identificando potenciais pessoas que poderiam
ameaçar o regime e propagando os benefícios do governo para ter o apoio da
população por convicção ou medo. No caso da Venezuela, os médicos importados de
Cuba também cumpriam esta função? A adoção de médicos de família cubanos foi
benéfica para a saúde dos venezuelanos? A sua ação abrangeu toda a população
venezuelana ou apenas aquelas das áreas identificadas como apoiantes do regime
Chavo-Madurista?
MG - A vinda de médicos de Cuba começou em 2002.
Naquele ano, já iniciada a crise política, foi fundamental que o governo Chávez
recuperasse a popularidade, porque a gestão dos primeiros anos não tinha muito
a oferecer (por exemplo, o programa de cuidados materno-infantis que atendia
mais de 500 mil crianças e mulheres grávidas foi eliminado nos primeiros meses
de sua administração). Neste contexto, o governo venezuelano copiou na prática
o conceito das missões que haviam sido implementadas em Cuba há dez anos. E uma
dessas missões foi a chamada Barrio Adentro, que incluiu médicos cubanos vindo
para a Venezuela.
Portanto, o objetivo dessa missão não era uma
política pública. Foi antes uma estratégia para enfrentar o referendo
revogatório de 2004, que o governo venceu. Os serviços que foram desenvolvidos
nesta missão tiveram mais efeitos publicitários para o governo, mas não tiveram
efeitos em termos de políticas de saúde. Os indicadores de saúde do país não
melhoraram devido a esta missão. A tal ponto que a mortalidade infantil e
materna aumentou nesses anos (atualmente não existem números oficiais, mas
estimativas internacionais indicam que estes indicadores pioraram
significativamente no país). Muitos dos médicos cubanos que entraram na
Venezuela juntaram-se aos milhões de venezuelanos que migraram, seja porque
foram para a Colômbia e outros países andinos, seja para os Estados Unidos.
Neste momento ninguém fala dessa missão.
MS – Entre 2014 e 2023, cerca de 7,7 milhões de
venezuelanos migraram do país, o que representa a maior taxa de imigração de um
país sul-americano na história. Entre os fatores que contribuem para a migração
estão a fome e a falta de cuidados de saúde para a população. Por exemplo,
entre 2017 e 2018, a maioria dos pacientes infectados pelo VIH interromperam a
terapia devido à falta de medicação. Muitos dos pacientes com HIV conseguiram
migrar para ter acesso ao tratamento que lhes foi negado pelo governo
venezuelano. No seu ponto de vista, como a deterioração do sistema de saúde
influenciou as estratégias migratórias da população venezuelana?
MG – Elas influenciaram totalmente. Desde 1999, tem
havido um aumento sustentado nas fontes de financiamento privado da saúde na
Venezuela. O gasto de saúde das famílias estimado pelas contas nacionais tornou-se
um dos mais elevados da região. Este processo coincide com a deterioração da
capacidade produtiva do país, com o encerramento de muitas empresas, e a
consequente perda de empregos. Em meados da década passada, 50% da população
não possuía nenhum tipo de seguro saúde (nem público nem privado). Em três anos
(2017), logo no início da hiperinflação, esse percentual subiu para 70%. É
evidente que esta situação se agravou nos anos de hiperinflação, influenciando
claramente a grande onda migratória ocorrida nesses anos. Por outro lado, as
pesquisas de opinião pública têm destacado consistentemente a importância que
as famílias atribuem à saúde, como um problema fundamental no seu quotidiano.
Um aspecto relacionado é que a cobertura
previdenciária da população idosa não ultrapassa 50% daqueles que deveriam
recebê-la e, por outro lado, o valor das pensões para esta população não
ultrapassou 5 dólares por mês durante muito tempo. Estas pensões são
financiadas com recursos fiscais, dado que não discriminam em função da
atividade laboral exercida. Para muitos idosos, com maiores restrições à
migração, parte da estratégia de sobrevivência considera que os seus filhos ou
netos possam emigrar para ampliar o financiamento das famílias no país através
do envio de remessas. Os custos com cuidados de saúde nesta população sem
qualquer tipo de proteção financeira é, sem dúvida, um fator que promove a
migração dos seus familiares. A migração, na prática, é uma demonstração das
imensas falhas das políticas de saúde e de segurança social vividas nos últimos
25 anos na Venezuela.
MS - Desde novembro de 2021, o Tribunal Penal
Internacional (TPI) abriu uma investigação sobre possíveis crimes contra a
humanidade na Venezuela, enquanto uma missão de investigação das Nações Unidas
encontrou razões suficientes para acreditar que crimes contra a humanidade
foram cometidos como parte de uma política estatal de repressão aos opositores.
De acordo com esta investigação, as autoridades judiciais do país participaram
ou foram cúmplices de abusos, servindo como mecanismo de repressão, incluindo o
fracasso de milhões de pessoas no acesso a cuidados médicos e nutrição
adequados. Qual será o seguimento desta investigação e que consequências poderá
ter para o governo? Esta pesquisa poderia trazer elementos para reverter a
crise do sistema de saúde venezuelano que atinge os mais pobres que não apoiam
o regime?
MG – A evolução das condições de saúde na Venezuela,
especialmente no contexto da complexa emergência humanitária que perdura há
oito anos, tem justificado múltiplas investigações em organizações
internacionais, tanto para o monitoramento dos direitos humanos como sobre seus
efeitos na vida das pessoas. É desejável que todas estas investigações sirvam
para prevenir novas situações e compensar os danos cometidos. Estas
investigações, pelas suas próprias características, possuem prazos e processos
que devem ser cumpridos.
Acredito que a melhoria da situação concreta
dos cidadãos, incluindo, claro, a saúde, envolve um processo de mudanças
institucionais e políticas que são muito complexas na Venezuela. As exigências
para modificar as atuais diretrizes são notáveis e os progressos não
acompanham as necessidades. Esperamos que nos próximos meses possamos
identificar pontos que nos permitam melhorar. A comunidade internacional e os
atores nacionais estão convencidos da gravidade da situação e das consequências
para a vida quotidiana de todos os venezuelanos, daqueles que vivem no país e
daqueles que vivem no estrangeiro.
MS – Um dos grandes problemas da Venezuela é a
crise alimentar, que além de ser um dos principais fatores de migração, afeta a
todos no país. Num contexto de pobreza e de salários muito baixos, os preços
dos alimentos aumentaram 315% entre setembro de 2022 e setembro de 2023. Muitos
países têm contribuído com doações para resolver a crise humanitária que, além
das questões da fome, envolve a violência doméstica, a violência contra as
mulheres e a violência contra as minorias LGBT. Como o governo enfrentou e/ou
pretende enfrentar esses problemas?
MG - Organizações nacionais que participam em tarefas de apoio no âmbito
da complexa emergência humanitária expressaram recentemente que menos de 10% da
população necessitada está a ser servida. Embora existam recursos disponíveis
para aumentar esta cobertura, salientam que múltiplos obstáculos impedem a
melhoria da situação. Em geral, há uma grande insatisfação porque estas
dificuldades não foram superadas. É evidente que a responsabilidade da gestão
governamental neste aspecto é um fator fundamental.
MS – A Venezuela é atualmente um dos países com
menor gasto público em saúde (1,7% do PIB e 4,9% do gasto público total). Por
que a saúde não é uma prioridade no orçamento público na Venezuela?
MG – Como em muitas áreas das políticas sociais, a
saúde é afetada por essa falta de prioridades na gestão pública. Os objetivos
de gestão de curto e médio prazo envolvem outros aspectos, entre eles, a
supremacia política e a obtenção de recursos para atividades na esfera
política. Portanto, a prioridade para a concepção e execução de políticas de
saúde de qualidade não é a questão principal. Isto exigiria a implementação de
processos de consulta e acordo para os quais não existe competência política ou
técnica e, além disso, não são uma prioridade. A única forma de transformar
esta situação é através de uma nova fase política que concentre esforços
sustentados para melhorar as instituições democráticas. Esse é o maior desafio,
na minha opinião, que a sociedade venezuelana enfrenta.
MS – Como você vê a situação da saúde na
Venezuela para 2024, incluindo questões de epidemiologia, funcionamento e
financiamento do sistema de saúde?
MG – Toda a situação em 2024 é influenciada pelas
eleições presidenciais, que ainda não têm data definida. Este acontecimento afetará
a situação política e terá consequências sociais e econômicas. A ausência de
políticas de qualidade, pelas razões indicadas, é o fator predominante.
Portanto, não pode haver modificações neste curso de ação sem melhorias nas
instituições democráticas. No pior cenário, se não houver progressos na esfera
política, o que pode acontecer é que as restrições económicas aumentem e a
atenção à complexa emergência humanitária piore. Acho que todos os alarmes continuam
a soar na Venezuela. É uma crise profunda e sistémica, com amplas repercussões
na região e, fundamentalmente, uma crise global das condições dos venezuelanos.
Deve ser uma situação da maior preocupação para todos, para os líderes
nacionais e para a comunidade internacional. É um ano muito crítico para o
futuro da sociedade venezuelana. Não tenho nenhuma dúvida.
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