Ano 18, Número 143, Fevereiro de 2024.
André C. Medici
O ano de 2024 será palco de eleições municipais - talvez as mais importantes até então realizadas - dado o quadro de polarização entre forças políticas brasileiras que se vive na atualidade. Para tratar deste tema a Revista Conjuntura Econômica da Fundação Getúlio Vargas - em sua edição de Fevereiro de 2024 - fez uma matéria especial sobre cidades, sob a responsabilidade da jornalista Solange Monteiro. A reportagem faz entrevistas com vários especialistas sobre temas de interesse das cidades - reforma fiscal, educação, saúde, segurança e mobilidade urbana. Caso vocês tenham interesse, passo aqui o link do artigo publicado neste edição ( https://ibre.fgv.br/sites/ibre.fgv.br/files/arquivos/u65/02ce2024_capa.pdf)
Solange me entrevistou para contribuir sobre o
tema de saúde nesta matéria. Neste sentido, passo a vocês a íntegra da minha
entrevista, de onde ela selecionou trechos específicos para a referida matéria.
Solange Monteiro
(SM) - Evolução do Papel dos Municípios Brasileiros na Prestação de Serviços de
Saúde
André Medici (AM) - No Brasil, a competência para
legislar e prestar serviços de saúde, desde a Constituição de 1988, é
concorrente entre a União, dos Estados e Municípios. Sendo a saúde um tema onde
a prestação não pode se dar em abstrato, necessitando de uma localidade física,
cabe aos Municípios, entidades que formam juntamente com os Estados, de acordo
om o texto constitucional, legislar sobre todos os assuntos de interesse local.
A expressão constitucional "competência comum" deve ser compreendida
como a capacidade e o direito que têm a União, os Estados, o Distrito Federal e
os Municípios de legislar e praticar todos os atos administrativos necessários
ao cuidado da saúde não havendo a supremacia jurídica de um sobre o outro.
No entanto, o Brasil conta atualmente com 5570
municípios, e não se pode deixar de visualizar a sua heterogeneidade no tocante
a sua dimensão populacional (temos municípios com menos de 1000 habitantes até
São Paulo, com mais de 10 milhões), capacidade de arrecadação e autonomia
fiscal e financeira, e capacidade administrativa para a provisão de serviços de
saúde em todos os níveis de complexidade.
Intuitivamente há uma divisão de papeis, onde
caberia aos municípios concentrar-se na atenção básica, enquanto Estados e
Governo Federal tratariam mais de temas de atenção de média e alta
complexidade, mas a realidade não é assim, dado que os maiores municípios têm
ações em todos os níveis de complexidade enquanto os menores nem o feijão com
arroz da atenção básica tem capacidade de produzir. Portanto, a chave para tudo
isso é a necessidade de um planejamento que permita aos governos gerar as reais
dimensões de escala administrativa, financeira e técnica para a prestação de
serviços de saúde.
A discussão sobre os temas de regionalização e
o conceito de região (ou redes) de saúde estariam na base para essa resolução.
Muitos Estados, como São Paulo, já operam seus sistemas nessas bases de
regionalização, integrando políticas e ações de saúde de Estados, Municípios e
Governo Federal para uma atenção planejada a uma população adstrita e de
determinada dimensão. Nesse particular, grandes municípios, como São Paulo, Rio
de Janeiro e Belo Horizonte, podem até mesmo, ter várias regiões de saúde,
enquanto outras regiões são formadas por um conjunto de municípios. Dentro de
cada Região de Saúde há uma hierarquia entre instituições de saúde, segundo
suas funções e grau de complexidade, das mais complexas como hospitais
terciários até as menos complexas como postos de saúde, que permitem trabalhar
ao longo de clínicas de cuidado que permitem a referência e contrarreferência
dos pacientes segundo a complexidade das ações de saúde que necessitam.
Em tese, este seria o melhor funcionamento, mas
na prática, isto não funciona. Não existem regiões ou redes de saúde em todos
os Estados e nem todos os Municípios estão arrolados a uma rede de saúde.
Portanto, deficiências no planejamento e gestão, fazem com que existam vazios
assistenciais, onde quem acaba pagando é o cidadão que não encontra saída
quanto necessita dos níveis adequados de atenção para as suas
necessidades.
Em saúde, apesar do discurso da igualdade e
equivalência entre os poderes, observamos que a autonomia dos municípios é
relativa e frágil, uma vez que, por exemplo, os municípios não possuem
representatividade no poder Legislativo e não podem propor emendas
constitucionais. A autonomia e status dos municípios pode, sem dúvida, ser
retirada de uma hora para outra através de Emenda Constitucional.
Ao mesmo tempo, as implicações da pretensa
igualdade entre os poderes na área de saúde são claras. Quanto maior número de
tomadores de decisão no poder executivo (5570 prefeitos, 27 governadores e
governo federal), mais difícil é o consenso sobre qualquer assunto, como pôde
ser recentemente observado durante a pandemia do COVID-19, onde muitas decisões
de 27 governadores foram ignoradas ou descumpridas em todo ou parcialmente por
uma parcela substancial dos prefeitos. Em períodos pré-Constituição Federal de
1988, os estados teriam a última palavra no que tange ao cumprimento dos
dispositivos de combate à pandemia, por exemplo.
É verdade que o empoderamento dos municípios na
saúde, com o recebimento de recursos federais através de transferências do
fundo nacional de saúde, contribuiu para melhorar o acesso local a serviços
básicos, mas ao mesmo tempo aumentou a inequidade nesse acesso, dado que nem
todos os municípios receberam a melhor combinação das transferências com seus
recursos próprios ou tiveram a melhor capacidade técnica e administrativa para
implementar as políticas de saúde. Como corolário, existem áreas de excelência na
cobertura de saúde e enormes vazios assistenciais.
Durante a pandemia essa desigualdade
assistencial ficou patente. Um estudo realizado pelo IEA da USP em São Paulo
demonstrou que a expansão dos casos de Covid-19 não ocorreu de forma homogênea
e uniforme em São Paulo, por exemplo. Nos pequenos municípios, com até 20 mil
habitantes, o aumento médio dos casos da covid-19 foi de 503% no segundo
semestre de 2020, mostrando que estes lugares iniciam o ano de 2021 com as
maiores taxas de contaminação do País. Se considerarmos apenas a situação dos
municípios menores ainda, com até cinco mil habitantes, a situação é mais
dramática, com aumento de 850%. A análise da difusão pelo território de doenças
transmissíveis, como a covid-19 deve ser entendida através da hierarquia das
cidades da capacidade resolutiva de suas rede de serviços em bloquear a
transmissão a través de medidas de comunicação social, detecção de casos e
medidas de saúde pública.
A pandemia de expôs a necessidade de fortalecer
a saúde pública e a importância do SUS, mas também apresentou as mazelas dessa
estrutura que, com baixos investimentos e escassos profissionais, fragiliza
desproporcionalmente as cidades pequenas, que, ao serem afetadas, apresentaram
os efeitos da pandemia com maior impacto sanitário. Portanto, um ordenamento
territorial da saúde, através de uma política mais ampla de regionalização e
redes hierarquizadas de saúde, é a única forma de transmitir, mas equidade e
eficiência a prestação de serviços, que se torna mais grave em situações emergências
como a da pandemia.
SM - Quais os desafios da coordenação de
políticas nas três esferas de governo, especialmente quanto a estimativa de
aumento dos repasses do governo federal, obedecendo ao mínimo constitucional
AM - O aprimoramento das regras de financiamento
do SUS, particularmente nos estados e municípios, é um dos grandes desafios no
Brasil. As atuais regras de repasse de recursos federais aos estados e
municípios, além de rígidas são uniformes numa realidade onde Estados e
Municípios têm necessidades diferenciadas. Na atual normatização dos repasses
de recursos, Estados e Municípios devem organizar-se para atender normas padronizadas
e definidas pelo ente transferidor, tendo como uma de suas vedações a não autorização
de quaisquer remanejamentos de valores entre os blocos temáticos. As eventuais
sobras recursos devem ser mantidas em aplicação financeira de resgate
automático até a sua data de utilização.
Um exemplo claro foi o que ocorreu nas
transferências de recursos aos estados e municípios para enfrentar a pandemia. A
repercussão dos efeitos da ausência de discricionariedade é um fator relevante,
quando foram disponibilizados quase R$ 10 bilhões para este fim. Como a
integralidade dos recursos foi alocada no bloco de custeio, as possibilidades
de gasto com as adaptações para o atendimento de necessidades de investimento
ficaram reduzidas. Para exemplificar, os governos subnacionais poderiam
adquirir equipamento de proteção individual, como luvas, máscaras, mas não foi
permitido investimento na ampliação de leitos hospitalares, respiradores,
monitores cardíaco, eletrocardiógrafos, e outros equipamentos, limitando as
ações dos municípios em áreas de maior urgência para o atendimento de casos
graves.
Desde novembro de 2023 o governo federal
assinou progressiva legislação de aumento de repasses aos Estados e Municípios
para compensar perdas de arrecadação com a reforma fiscal. No entanto, ainda
não estão definidas as regras, no caso da saúde, de como os recursos atualmente
repassados de forma negociada poderão ser revistos para dar maior autonomia.
O repasse de recursos, tanto para custeio e
investimento dos Estados, deveria estar associado a projetos de investimento de
cada esfera, mas dentro de um processo de coordenação de redes de saúde ou
regiões de saúde que demonstrem investimento conjuntamente planejados nestas
esferas. Atualmente, estados e municípios recebem suas transferências em
“silos” e não discutem projetos coordenados de investimento e custeio de suas
ações de saúde. Com a rigidez do formato das transferências e a falta de uma
coordenação prévia no planejamento das ações, acabo ocorrendo baixa eficiência,
baixo retorno dos recursos transferidos e, muitas vezes, devolução de recursos.
Adiciona-se a tudo isso o processo esquizofrênico de desviar cada vez mais
recursos para emendas parlamentares, que acabam fazendo investimentos “fora da
caixa”, muitas vezes de resultados duvidosos, já que estão mais alinhados com
os interesses políticos dos parlamentares do que com as reais necessidades de
suas regiões.
SM - Boas práticas que deveriam servir como
guia desse debate
AM - Primeiramente, é necessário estimular a
elaboração de planos de saúde regionais, envolvendo a participação ativa de
gestores municipais e estaduais, antes de discutir os planos individuais de
cada estado ou município. Integrar os planos locais em uma abordagem regional,
considerando as necessidades específicas de cada área é essencial.
Em segundo lugar, haveria a necessidade de
fortalecer os processos de transparência e prestação de contas dos recursos
transferidos, criando mecanismos transparentes de divulgação dos critérios e
valores das transferências para auxiliar o papel de órgãos como os tribunais de
contas federal e dos estados, disponibilizando informações detalhadas sobre a
destinação dos recursos e os resultados alcançados.
É necessário fortalecer as Redes de Atenção à
Saúde e fomentar sua criação sustentável promovendo a integração entre os
diversos níveis de atenção. Deve-se valorizar o trabalho em rede, com ênfase na
comunicação entre os diferentes pontos de atenção. A promoção da regionalização
de forma gradual e sustentável, é tarefa precípua dos Estados, considerando as
especificidades locais e respeitando as capacidades de gestão.
Deve-se incentivar a integração de sistemas de
informação em saúde nos diferentes níveis de atenção e entre os entes
federativos, e facilitar o compartilhamento de dados para uma gestão mais
eficiente e integrada.
É necessário, também, incentivar a participação
ativa de conselhos de saúde, representantes da sociedade civil e profissionais
de saúde na definição de critérios e prioridades dado que cada realidade é mais
diversificada do que pensa o governo federal de seu Olimpo em Brasília. A
realização de audiências públicas para discutir orçamentos e planos de
aplicação dos recursos deveria ser um processo mais frequente e menos
protocolar, nesse aspecto.
Vincular a transferência de recursos a metas
regionais de saúde, incentivando o alcance de indicadores de desempenho é outro
passo importante. Deve-se considerar, nesse caso, a efetividade das redes de
atenção à saúde na distribuição de recursos. A Implementação de indicadores de
avaliação de desempenho regionais para mensurar a efetividade do uso dos
recursos é crucial, dado que, no Brasil, acaba não havendo nenhuma
responsabilização sobre a ineficiência na aplicação dos recursos, o que faz com
que ela se repita a cada ano. Estabelecer metas e resultados esperados,
vinculando o repasse de recursos ao alcance dessas metas seria crucial.
Promover a descentralização dos recursos, mas
garantindo capacidade técnica e gerencial nos níveis estaduais e municipais
também me parece essencial. Deve-se oferecer capacitação constante aos gestores
locais para melhorar a eficiência na aplicação dos recursos. Investir em
capacitação e educação permanente para profissionais de saúde envolvidos nas
redes regionais é uma missão fundamental das redes de saúde, que tem que ser
gerenciadas com base em conhecimentos, técnicas e evidências.
Devem-se aumentar, ao nível das redes, os incentivos
para fortalecer a atenção primária como ponto central na organização das redes
de saúde e valorizar estratégias de prevenção e promoção da saúde. Para tal, o
desenvolvimento e implementação de protocolos e linhas de cuidado regionais,
garantiriam a padronização da gestão, a qualidade nos serviços de saúde e a
integração dos cuidados de forma articulada e eficiente.
Permitir certa flexibilidade nos repasses,
considerando as peculiaridades e necessidades específicas de cada região é
essencial. Realizar revisões periódicas nos critérios de distribuição,
adaptando-os às mudanças epidemiológicas e demográficas é a melhor forma de
flexibilizar, inicialmente, esse processo. Mas ainda que a finalidade das
transferências deva ser o mais flexível possível, é necessário estabelecer
padrões e protocolos para os processos de prestação de contas, facilitando a
análise e auditoria. Utilizar sistemas integrados de informação para agilizar
os procedimentos e reduzir a burocracia é essencial.
Devem-se criar programas de incentivo à
inovação em saúde e qualificação dos profissionais para estimular a
implementação de boas práticas e modelos eficientes de gestão. É necessário
também facilitar a troca de experiências bem-sucedidas entre Estados e
Municípios e estimular a colaboração e cooperação entre diferentes esferas de
governo, rompendo a atual situação de decisões tomadas em silos. Manter canais de diálogo abertos entre os
entes federativos para ajustes e melhorias constantes é a chave para reduzir
disparidades e se beneficiar das sinergias entre experiências bem-sucedidas.
Por outro lado, o combate à corrupção e a
criação de controle e fiscalização para prevenir desvios e práticas corruptas é
fundamental para estabelecer canais de denúncia e auditorias independentes.
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