quarta-feira, março 04, 2020

Será a tecnologia negativa para os recursos humanos em saúde? Entrevista para a Revista da UNIMED do Paraná

Ano 14, No. 100, Março de 2020.

Em Janeiro de 2020 a jornalista Giórgia Gschwendtner da UNIMED Paraná me solicitou uma entrevista sobre a relação entre tecnologia e recursos humanos em saúde. Abaixo publico a entrevista em sua forma literal. Boa leitura!


GG - Acompanhei em linhas gerais o seu blog, e vejo que debate muito sobre os caminhos da saúde, neste cenário de mudanças constantes e cada vez mais aparatos tecnológicos, onde se encaixa o profissional da saúde hoje?

AM – O uso de tecnologia na saúde não deve ser visto como uma força que vai limitar a expansão do número de profissionais de saúde, mas sim uma forma que vai enriquecer o conteúdo do trabalho do profissional de saúde, exigindo dele maior dedicação e conhecimento e propiciando maior precisão e eficiência nos resultados de seu trabalho. A tecnologia leva ao desenvolvimento de novas profissões de nivel técnico em saúde, mas também requalifica e especializa as profissões de nivel superior, como médicos e enfermeiros.

Na busca da eficiência, da qualidade e de custos mais acessíveis, as novas tendências na gestão de saúde fazem com que a atenção primária, promoção e prevenção ganhem cada vez mais relevância. Na carteira de uma UNIMED, por exemplo, é mais importante manter sua população de beneficiários saudável do que enferma e sobre-utilizando os serviços de saúde. Neste processo, profissionais de saúde integrados com a comunidade devem passar a fazer parte das equipes assistenciais, juntamente com médicos, enfermeiros e outros profissionais. Ao ter contacto com a comunidade eles promoveriam a saúde, fariam algum tipo de prevenção e identificariam e encaminhariam os "caso de negócios" relevantes, evitando a criação de demanda desnecessária nos prontuários de serviços.

Nos Estados Unidos, depois do Plano Obama, tem se destacado o uso de agentes comunitários de saúde como parte do sistema de saúde. Por exemplo, o Blueprint for Health de Vermont, inclui equipes de saúde da comunidade, com base em profissionais indicados pelas suas lideranças. Muitas organizações de atendimento responsável (Accountable Care Organizations), fornecem incentivos para que os prestadores de assistência à saúde da população incorporem profissionais de saúde que conhecem e sabem identificar as demandas individuais e das comunidades.

GG - Há uma extrema competição entre máquinas tecnológicas X humanos capacitados, ou no caso do Brasil ainda é uma realidade bastante distante?

AM - Não acredito que haja uma competição entre o uso de máquinas e de profissionais em saúde em qualquer lugar, não só no Brasil mas no mundo. A competição, como sempre, existe entre profissionais em função de sua qualificação e competência. Muitos acham que médicos parecem estar prestes a serem substituídos por robôs e inteligência artificial. Mas a realidade parece ser justamente o contrário. Em vez de substituir os profissionais de saúde, a tecnologia poderá ajudar às organizações de assistência à saúde na geração de uma força de trabalho em saúde profissionalmente mais satisfeita - retirando o robô que (atuamente) existe dentro do trabalho humano e liberando a produtividade e a criatividade dos profissionais.

A força de trabalho representa a maior parte dos custos em saúde e, do meu ponto de vista, continuará a representar. Nos hospitais, por exemplo, a mão-de-obra representa quase 60% dos custos. As operadoras de planos de saúde, como acontece na UNIMED, também empregam muitas pessoas, com uma ampla variedade de tarefas e posições, algumas complexas e inovadores, mas muitas ainda rotineiras e repetitivas. Com a evolução da tecnologia médica, as atividades assistenciais mudarão radicalmente, através de uma combinação estratégica entre profissionais e máquinas, aumentando a qualidade, os resultados e a eficiência do setor saúde.

O uso de inteligência artificial e de tecnologias como machine learning podem ajudar a otimizar processos relacionados a contratos com fornecedores, provedores de serviços e planos de saúde quando há grandes quantidades de dados, extraindo informações relevantes de extensos documentos e compatibilizando os vários formatos de dados. Freqüentemente, funcionários administrativos dos planos de saúde usam processos repetitivos para funções como inscrições, cobrança e processamento de solicitações que poderão se beneficiar da automatização desses processos, libertando os funcionários de tarefas comuns, como entrada e reconciliação de dados. Os funcionários, liberados de tarefas rotineiras, podem utilizar seu tempo para realizar análises dos dados, melhorar a experiência do paciente e cuidar diretamente do atendimento das demandas dos assegurados. Os gerentes, por sua vez, utilizando processos de machine learning em tempo real, podem calcular o valor dos prêmios dos planos de saúde, em tempo real, para interagir e atender as necessides de potenciais futuros participantes.

Os médicos normalmente usam uma grande parte de seu dia de trabalho concluindo tarefas que não são críticas para o atendimento ao paciente e com isso não conseguem responder rapidamente as demandas e até mesmo casos urgentes. Utilizando inteligência artificial para realizar estas tarefas, os médicos terão mais tempo disponível para responder aos pedidos de seus pacientes e softwares de inteligência artificial poderão classificar os pedidos segundo a urgência para determinar o fluxo de atividades do médico.

Portanto, não acredito em competição entre máquinas e profissionais de saúde, mas sim em cooperação.  A remoção das tarefas rotineiras e repetitivas ajudará a tornar os profissionais de saúde mais felizes, acelerando sua produtividade e a natureza de seu trabalho. O uso de robôs não vai eliminar a força de trabalho, mas sim remover os elementos mais tediosos da vida profissional, criando maior sinergia entre médicos e gestores de saúde, além de pacientes mais felizes, saudáveis e menos dispendiosos para o sistema.

GG - Que tipo de profissional o senhor acredita que está sendo moldado pelas academias? 

AM – Nos países desenvolvidos, acredito que a educação em saúde está mudando rapidamente, sendo influenciada por muitos fatores, incluindo a tecnologia, mudança nos processos clínicos e cuidados de saúde, mudanças do papel dos profissionais, aumento das equipes interdisciplinares de saúde no cuidado aos pacientes e expectativas de uma sociedade melhor informada sobre políticas de saúde. As nudanças nas expectativas da sociedade, por exemplo, colocam a segurança do paciente em primeiro plano e levantam questões éticas sobre os tratamentos e procedimentos de saúde, temas de coordenação do cuidado, uso em massa de tecnologia da informação e conceitos como valor, centralidade no paciente, saúde populacional, eficiência e gestão de custos. Os objetivos educacionais do uso da tecnologia na educação médica incluem facilitar a aquisição de conhecimentos básicos, melhorar a tomada de decisões, melhorar a variação perceptiva, melhorar a coordenação de habilidades, praticar eventos raros ou críticos e aprender a trabalhar em equipe. No Brasil, eu diria que este processo ainda está insipiente, dado o exagerado peso das especialidades médicas na formação curricular básica, a ausência de conteúdos de gestão clínica e a falta de integração entre os temas de promoção, prevenção e atenção médica no contexto de cada especialidade.  

GG - Ainda que a formação compreenda as necessidades do mercado é fato que o conhecimento se torna obsoleto com maior agilidade, como enxerga que esta questão pode afetar o profissional e também a saúde como um todo?

AM – A velocidade de geração de conhecimento e mudança nas práticas profissionais faz com que, não somente na área de saúde, como em todas as áreas de conhecimento, profissionais necessitem estar constantemente em processo de educação permanente. Em muitos países, algumas especialidades médicas exigem exames formais de recertificação para garantir que os profissionais tenham seu conhecimento atualizado frente a mudanças na realidade da organização dos serviços de saúde. Mas no Brasil, esse tipo de requerimento não existe. Aqueles profissionais de saúde que estão nos melhores hospitais e nas melhores práticas, procuram atualizar-se por conta própria através da participação em congressos e eventos científicos e na organização de grupos de trabalho e discussão. Mas um grande número de profissionais de saúde não participa destes processos e acaba tendo seus conhecimentos obsoletos, pondo em risco sua prática médica e a saúde dos pacientes

GG - Em um a paralelo da saúde suplementar e do SUS como estamos hoje equipados para cuidar dos pacientes?

AM – Minha percepção é que existe uma grande heterogeneidade de situações, tanto no SUS como na saúde suplementar. Os planos de saúde melhores procuram ter entre sua rede de prestadores profissionais, clínicas e hospitais que se encontram na vanguarda dos processos de inovação e qualidade em saúde. No caso do SUS, alguns hospitais universitários, organizações sociais e centros especializados, bem como modelos de saúde da familia e clínicas de especialidades em alguns Estados e Municípios permitem condições adequadas para cuidar dos pacientes, mas isso não acontece com a maioria dos planos e serviços de saúde. Na medida em que processos de acreditação (de planos, hospitais e serviços de saúde) não são obrigatórios e padrões de qualidade não são acompanhados, não existem reais incentivos para aumentar a eficiência e a qualidade na prestação dos serviços de saúde.




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