segunda-feira, dezembro 04, 2023

A Necessidade de Manter a Transparência e Agilidade das Informações sobre Gastos Públicos em Saúde no Brasil

 

Ano 18, Número 139, Dezembro de 2023


André Medici

Antecedentes

Os dados sobre orçamentos e gastos públicos em saúde no Brasil, tanto ao nível federal como ao nível das esferas estaduais e municipais, sempre foram muito dispersos até a criação do Sistema de Informações sobre Orçamento Público de Saúde (SIOPS) do Ministério da Saúde no ano de 1999, durante a gestão José Serra daquele Ministério.

Antes dessa data, os dados de orçamento e gasto do governo federal em todas as áreas de administração pública, eram registrados pelo Ministério da Fazenda a partir das informações de seus órgãos de administração direta e indireta, e por órgãos correspondentes nos estados e municípios, buscando consolidar as informações destas esferas administrativas.

Naquela época, o Departamento de Contas Nacionais (DECNA) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o próprio Ministério da Fazenda, coletavam informações, com uma certa defasagem no tempo, dos gastos públicos das esferas estaduais e municipais para consolidá-las, conjuntamente com os federais, como referência histórica, mas não para gestão ou intervenção administrativa, dada a defasagem com que estas informações ficavam disponíveis.

Isto permitia, com muito trabalho de depuração e harmonização, consolidar estes dados em séries históricas que registravam como os governos, em todas as esferas públicas, aplicavam os recursos que arrecadavam através de impostos, taxas e contribuições, em benefício da população, para dar uma dimensão do alcance e da eficiência das distintas esferas de administração pública.

No caso da saúde, o primeiro esforço brasileiro para a contabilização desta série histórica de gastos em saúde foi realizado através do extinto Instituto de Economia do Setor Público (IESP) da Fundação de Amparo à Administração Pública do Estado de São Paulo (FUNDAP), resultando em várias publicações e na produção de uma base de dados consolidada de gastos sociais nas três esferas de governo[i]. A partir deste momento, começou a aumentar o interesse analítico – tanto do setor público e da sociedade civil[ii], como das áreas acadêmicas - sobre a consolidação do gasto em saúde, uma vez que um dos desafios do Sistema Único de Saúde (SUS), criado em 1988, era aumentar a base de sustentação financeira desse sistema a partir do comprometimento de gastos das três esferas de governo com políticas de saúde.

Ao mesmo tempo, a partir da promulgação do Plano Real em 1994 e a dissipação da hiperinflação que dificultava a gestão das contas públicas brasileiras, ficou mais fácil para os governos programarem e planejarem os gastos em políticas sociais e, especificamente, comprometerem-se com o aumento dos gastos de saúde[iii]. O Ministro da Saúde José Serra, ao assumir o Ministério da Saúde em 1998, comprometeu-se, com a ajuda do Congresso Nacional, a promulgar legislação que definisse os mínimos de aplicação de recursos públicos em saúde da União, Estados e Municípios. Nesse sentido, seria necessário institucionalizar os mecanismos de contabilização dos gastos em saúde em todas as esferas de governo.

Com estes antecedentes foi assinada, em abril de 1999, a Portaria Interministerial MS/PGR nº 529 pelo Ministro da Saúde e pelo Procurador-Geral da República, designando uma equipe para desenvolver o projeto de implantação do Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS), o qual foi criado e oficializado no Ministério da Saúde através da Portaria Conjunta MS/PGR nº 1163, de 11 de outubro de 2000, posteriormente retificada pela Portaria Interministerial MS/PGR nº 446, de 16 de março de 2004.

 

O atraso na divulgação dos dados do SIOPS e a falta de transparência dos dados de gastos em saúde em uma conjuntura crítica.

Segundo o Ministério da Saúde[iv] o SIOPS, atualmente coordenado pelo Departamento de Economia da Saúde, Investimentos e Desenvolvimento (DESID), da Secretaria Executiva do Ministério da Saúde, teve os seguintes desenvolvimentos:

·       Desde 2012, seu banco de dados é alimentado pelos estados, Distrito Federal e municípios, por meio do preenchimento de formulário em software desenvolvido pelo Departamento de Informática do SUS (DATASUS), com o objetivo de apurar as receitas totais e as despesas em ações e serviços públicos de saúde sendo seu preenchimento obrigatório e de natureza declaratória, com compatibilidade com as informações contábeis, geradas e mantidas pelos estados e municípios, e em conformidade com a codificação de classificação de receitas e despesas, definidas pela Secretaria do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda (STN/MF). As informações prestadas devem ser inseridas e transmitidas eletronicamente para o banco de dados do sistema, através da internet, gerando indicadores de forma automática.

O SIOPS é o instrumento oficial para o acompanhamento do cumprimento do dispositivo constitucional que determina aplicação mínima de recursos em ações e serviços públicos de saúde da União, estados e municípios, conforme a Lei Complementar (LC) 141/2012. Até 2012 eram disponibilizadas informações de forma semestral e anual, mas a partir de 2013, o registro de dados passou a ser bimestral e obrigatório, conforme determina a própria LC 141/2012.

Portanto, o SIOPS deveria propiciar aos governos, em todos os níveis, aos tribunais de contas e a sociedade civil, em geral, a transparência e a visibilidade sobre a aplicação dos recursos públicos em saúde, de forma a dar elementos que melhorem a precisão e o alcance de metas na gestão pública, das aplicações e investimentos em saúde do SUS. Portanto, mudanças metodológicas de qualquer natureza ou problemas na divulgação das informações não podem servir de pretexto para paralisar a produção e disseminação dos dados e os governos, em todos os níveis, inclusive o federal, deveriam sofrer severas penalidades caso isso vier acontecer.

No entanto, as informações do SIOPS estiveram disponíveis bimestralmente até o sexto bimestre de 2022. Mas a partir de janeiro de 2023 não se produziu mais nenhuma informação financeira do SIOPS. De acordo com o Ministério da Saúde, o SIOPS relacionado ao 1º bimestre de 2023 foi comprometido devido a problemas técnicos no desenvolvimento do sistema, impedindo que os municípios recebessem os formulários para preencher os dados e ficar, desta forma, elegíveis para receber recursos do governo federal para complementar o financiamento da saúde de suas esferas.

O DESID tem por obrigação disponibilizar o formulário eletrônico do SIOPS aos entes federados até dez dias após o encerramento de cada bimestre, conforme disposto na Portaria de Consolidação GM/MS nº 01/2017, mas isso, ao que parece, só foi feito em Abril de 2023, e não em janeiro ou fevereiro, o que representou um atraso de pelo menos dois bimestres na produção dos dados das esferas locais de governo. Em comunicado de 18 de abril de 2023, a direção do DESID informou aos usuários do SIOPS que

“O Ministério da Saúde, por meio do Departamento de Economia da Saúde, Investimentos e Desempenho (DESID), informa que, em 18/04/2023 foram disponibilizados os arquivos de estrutura para preenchimento dos dados referentes ao 1º bimestre de 2023; assim como nova versão do programa SIOPS. O arquivo de estrutura pode ser baixado – por meio do navegador *Edge – no sítio eletrônico do SIOPS, na página do Módulo de Gestores; já o software pode ser baixado na página de Downloads.

Orientamos aos usuários que antes de proceder com as atualizações da versão do sistema e do arquivo de estrutura, para evitar perda de dados, realizem um backup da seguinte forma: na Unidade de Sistema C:/Arquivos de Programas/SIOPS faça uma cópia da pasta XML em outro local da máquina ou dispositivo de armazenamento externo”.[v]

Utilizando a mesma estrutura de comunicados, o Ministério da Saúde passou a disponibilizar os arquivos de estrutura para preenchimento dos dados referentes do 2º ao 5º bimestre até 14 de novembro de 2023. Mesmo assim, nenhum dado relacionado a 2023 foram, até o momento, homologados pelos gestores, publicados e disseminados pelo SIOPS, o que prejudica a transparência sobre o conhecimento dos dados financeiros do SUS nos três níveis de governo para o corrente ano[vi].

Porque será que, até o presente momento[vii] este tema não foi resolvido? Como o repasse de recursos da saúde para estados e municípios dependem da entrega dos dados, muitos municípios que enviaram, começaram a cobrar a manutenção do repasse dos recursos e a solução temporária utilizada pelo Ministério, o repasse de recursos independentemente da remessa dos dados ao SIOPS, tem sido capaz de arrefecer o ânimo dos municípios em produzir a informação com a agilidade necessária. Isto tem, também, propiciado ao Ministério da Saúde ter menos pressão externa para a produção e disseminação das informações do SIOPS.

 

Os gastos federais com saúde e as promessas de campanha do novo governo

A consolidação das informações sobre gastos em saúde no país é uma iniciativa do final dos anos noventa com o intento de transmitir, para toda a população brasileira, especialmente gestores do SUS, auditores e analistas de gasto em saúde, o conhecimento sobre quanto cada unidade político-administrativa tem aplicado na área de saúde, permitindo acompanhar o cumprimento dos mínimos constitucionais necessários para a garantia das despesas de saúde.

Como visto, até o presente momento, não há informações divulgadas dos dados do SIOPS para 2023. Não divulgar e não dar transparência aos dados do SIOPS, mesmo que utilizando o argumento de imbróglios administrativos ou mudanças metodológicas, poderia ser uma forma fácil do governo não deixar passar em branco a magnitude e a distribuição dos recursos aplicados a saúde, especialmente depois de afirmar, durante a campanha que o levou a vitória nas urnas, seu compromisso inadiável com o aumento do gasto nesse setor.

Tal comportamento poderá, ainda, servir a múltiplos propósitos internos do uso da máquina pública, tais como realizar repasses preferenciais a alguns entes federados fora das regras existentes em troca de favores políticos, ou até mesmo reduzir os recursos orçamentários na área de saúde para privilegiar outras áreas que poderiam devolver mais apoio parlamentar aos interesses do poder executivo. Nesse sentido, a transparência das informações de financiamento e gasto de saúde propiciada pelo SIOPS se torna cada vez mais um imperativo para uma melhor gestão das políticas de financiamento e gasto do setor, dando elementos para avaliar como o governo federal distribui seus recursos de acordo com as prioridades sociais de saúde, e conhecer como as esferas locais – estados e municípios – gastam seus recursos de forma eficiente e equitativa.  

As promessas de campanha do atual governo, passavam por aumentar recursos para a saúde, através da eliminação do teto de gastos proposto pela Emenda Constitucional (EC) 95[viii] e da promulgação de dispositivos que recuperassem a elevação os recursos federais para a saúde ao patamar de 15% da receita de contribuição líquida (RCL) da União, como previsto na EC 86, de 2015. Esse fato poderia ter ocorrido através de dispositivos endógenos à própria promulgação do novo arcabouço fiscal (Lei Complementar 200), aprovado pelo Congresso em 22 de agosto de 2023.  

A revisão do orçamento federal para 2023 expressa, em certo sentido, esse compromisso do atual governo em aumentar os gastos em saúde, já que o orçamento do Ministério da Saúde, entre a elaboração do Projeto de Lei Orçamentária (PLOA) de 2023, ainda sob responsabilidade do governo anterior, e a Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2023, aprovada durante o mandato do anual governo, passou de R$162,9 para R$183,8 bilhões, representando um aumento de recursos superior a R$20 bilhões[ix].

No entanto, alguns problemas adjacentes a consecução das metas do novo arcabouço fiscal tem levado o governo a alterar esse compromisso, pelo menos no curto prazo. Um projeto de lei complementar do poder executivo (PLP 136, de 2023) em tramitação na Câmara dos Deputados, incluiu um dispositivo (artigo 15) que altera a base de cálculo do piso federal das ações e serviços públicos de saúde (ASPS) e modifica o critério de medição da RCL, a qual deixa de ser vinculada à receita realizada do ano anterior e passa a se referir a receita estimada na LOA vigente. Esse artifício pode trazer riscos de definhar, ao longo de muitos anos, os recursos do governo federal a serem aplicados em saúde a partir de 2023[x].

Por outro lado, esse processo parece ser favorável aos controles associados ao novo arcabouço fiscal (Lei Complementar 200, de 2023) e ao cumprimento de suas metas, durante o tempo que for necessário[xi]. Ainda nesta linha, o Tribunal de Contas da União (TCU) decidiu, em 22 de novembro de 2023, que os pisos mínimos constitucionais para as áreas de saúde e educação só deverão ser observados a partir de 2024, buscando atender a um pedido do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para que a regra não fosse aplicada em 2023 como forma de evitar transtornos que possam ameaçar o cumprimento das metas fiscais. Com isso, o presente ano já está comprometido com um gasto federal em saúde de 15% da RCL da União, conforme prometido pelo atual governo.

Embora o PLOA 2024 estime um crescimento dos gastos reais do Ministério da Saúde da ordem de 22,8%, o que elevaria os recursos a preços de hoje para a casa dos R$230 bilhões, as pressões sobre o déficit público do atual governo, que precisa arrecadar cada vez mais para manter um patamar elevado de gastos sociais e investimentos necessários ao crescimento da economia, poderão continuar a crescer e, dessa forma, comprometer a realização desta meta orçamentária para a saúde ainda no próximo ano.

Além do mais, pouco se sabe qual será o impacto de todas as reformas trazidas pela nova legislação de arcabouço fiscal, nas receitas e na capacidade de financiamento dos Estados e Municípios, os quais tem cumprido, em média, seus tetos constitucionais de gasto em saúde e continuam bancando a maior parcela dos gastos do SUS ao longo de pelo menos duas décadas.

Por todos esses motivos, a transparência na publicação dos dados de financiamento do SUS, através do SIOPS, torna-se cada vez mais relevante. Caso contrário, a sociedade brasileira perderá os elementos cruciais para continuar avaliando a dinâmica dos gastos em saúde nos próximos anos e organizar-se para evitar que os propósitos de implantação do SUS de forma plena continuem a ser, apenas, uma promessa.

 

NOTAS



[i] Entre essas publicações, ver MEDICI, A.C. e MACIEL, M.C.N.P.M, A Dinâmica do Gasto Social nas Três Esferas de Governo: 1980-1992, publicado no livro “Descentralização e Políticas Sociais da série Federalismo no Brasil, Ed. FUNDAP, São Paulo, 1995, Editores, Rui de Britto Álvares Affonso e Pedro Luiz Barros Silva.

 

[ii] A ideia de criar um sistema que disponibilizasse informações sobre despesas em saúde de todos os entes federados foi considerada relevante pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), quando da instalação dos Inquéritos Civis Públicos nº 001/ 94 e 002/94 sobre o funcionamento e financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS).

 

[iii] Ver MEDICI, André (2019), O Plano Real e a Viabilidade do SUS in Blog Monitor de Saúde, Ano 13, No. 95, Julho de 2019, link https://monitordesaude.blogspot.com/2019/07/o-plano-real-e-viabilidade-do-sus.html

 

[v] Comunicado CSIOPS 005/2023, acessado em 03/12/2023.

 

[vi] Até o momento, os dados mais recentes do SIOPS homologados pelos gestores foram os do 6º. Bimestre de 2022.

 

[vii] Este artigo foi fechado em 4 de dezembro de 2023 e, até este momento, o Ministério da Saúde não tinha publicado na página do SIOPS nenhum dado relacionado ao ano 2023. A última informação disponível até então era a do 6º. Bimestre de 2022.

 

[viii] A EC-25, promulgada em 2016, previa apenas a correção monetária do gasto realizado no ano anterior para a manutenção dos pisos constitucionais de saúde e educação.

 

[ix] Ver Brasil, Lei Orçamentária 2023, Volume IV, Detalhamento das Ações, Orgãos do Poder Executivo, Presidência da República e Ministérios (Exceto MEC). Página 173.

 

[x] Uma análise crítica destes riscos pode ser encontrada no artigo de opinião de Funcia, F., Santos, L. & Pinto, E. Riscos causados à sustentabilidade do SUS pelo PLP 136, de 2023 publicado no Conjur em 25 de setembro de 2023. Link: https://www.conjur.com.br/2023-set-25/opiniao-riscos-sustentabilidade-sus-plp-13623/#_ftn3

 

[xi] Em situações em que é importante o controle do déficit público e são elaboradas metas correspondentes, os governos buscam sempre subestimar as receitas na elaboração dos orçamentos, como forma de não estimular os órgãos da administração pública a aumentar suas previsões de gasto.

 

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