Ano 18, Numero 140, Dezembro de 2023
No próximo domingo, dia 10 de dezembro, Javier Milei toma posse como Presidente da Argentina. Com uma agenda disruptiva de reformas, Milei tem muitas propostas para tentar melhorar a combalida situação do sistema de saúde argentino sem financiamento, deteriorado e com acesso reduzido pelos anos de depauperamento trazidos pelo populismo dos governos Kirschner-Fernandez. Mas serão as propostas apresentadas por Milei realistas. Minha opinião foi dada em uma postagem realizada em novembro neste mesmo blog. Mas os prognósticos devem ser feitos por aqueles que respiram a economia da saúde na Argentina.
Para esse desafio, convidei Carlos Vassallo
Sella, um dos maiores economistas de saúde argentino, também um grande amigo.
Conheci Carlos no início dos anos noventa, quando fui presidente da Associação
Brasileira de Economia da Saúde e participávamos de encontros acadêmicos para
discutir questões desse tema relativos à região. Carlos é formado em economia pela
Universidade Nacional do Litoral e tem pós-graduação na Universidade de Bocconi
(Milão, Itália). Ele é professor titular de saúde pública da Faculdade de
Ciências Médicas (UNL), professor convidado da Universidade de San Andrés, da
Escola de Saúde Pública da Universidade Nacional de Córdoba e da Universidade
Nacional de Cuyo (Mendoza). É coordenador científico e professor do Mestrado em
Política e Gestão em Saúde do Convênio Europa-América Latina da Universidade de
Bologna. Além disso, é Presidente do Pacto Argentino para a Inclusão em Saúde
(PAIS), um grupo que congrega vários pensadores críticos do sistema de saúde e
propõe soluções para as políticas de saúde da Argentina. Com vocês, as palavras
de Carlos Vassallo.
Monitor de Saúde (MS) – Quais os principais
problemas que o sistema de saúde argentino enfrenta, no curto, médio e longo
prazo?
Carlos Vassallo (CV) – É um momento crítico para a saúde
que se vê muito afetada pela situação macroeconómica (inflação elevada,
escassez de divisas), a qual se manifesta pela distorção dos preços relativos
punindo aqueles que, como a grande maioria dos profissionais do sector, vivem
de salários ou honorários recebidos como trabalhadores autônomos ou informais.
A crise cambial provoca dificuldades crescentes no acesso a insumos médicos,
materiais descartáveis, peças de reposição para manutenção de equipamentos,
afetando a qualidade de serviços essenciais para a realização de cirurgias,
exames de laboratórios e outras intervenções clínicas. Todos esses fatores
causam frustração em todos os recursos humanos da saúde e comprometem o cuidado
da população.
A médio e longo prazo, a fragilidade na
governação do sistema constitui um dos desafios fundamentais para recuperar a
capacidade de manobra e poder levar a cabo um longo processo de reformas e
ajustamentos que permitam avançar para um sistema de saúde mais pluralista e
integrado.
MS – Os governos Cristina Kirschner e Fernández
contribuíram para resolver estes graves problemas do sistema de saúde
argentino?
CV – Infelizmente, apesar de ter tido anos
importantes de estabilidade e crescimento económico (2003-2010), o governo
perdeu uma grande oportunidade de organizar o sistema e sair da emergência no
setor privado para reforçar a seguridade social, através de uma reforma
laboral. O setor público foi redimensionado buscando reeditar um Ministério da Saúde
de um país que não existia mais. A centralização e acumulação de recursos
sobrepostos e desperdiçados em programas paralelos e a ausência de uma visão
estratégica sobre as funções que um ministério deve desempenhar não permitiram
trabalhar em conjunto com o PAMI e a Superintendência dos Serviços de Saúde na
construção da governabilidade de um sistema de saúde pluralista e diversificado
com todas as consequências de uma forte segmentação social.
A questão ideológica sempre foi mais importante
que a realidade para estes governos que perderam uma grande oportunidade.
Depois, durante 2011, a economia entrou num processo de inflação e baixo
crescimento económico que enfraqueceu a janela de oportunidade perdida no
período anterior. Se eu tivesse que resgatar algo, seria o Plano SUMAR
como um esquema para modernizar a relação entre a nação e as províncias através
de uma modalidade de pagamento que permitisse a incorporação de incentivos e a
integração de benefícios.
MS – Como o senhor avalia o papel dos
organismos internacionais na contribuição para o processo de reforma do sistema
de saúde argentino nos últimos anos?
CV - As organizações internacionais desempenharam
mais um papel compensatório macroeconómico do que contribuições para reformas
estruturais e contribuições qualitativas. Bastou esperar até 2020 para que a
rede de critérios fornecesse elementos para a construção de um plano de
benefícios, instrumento fundamental para pensar e governar um sistema tão
fragmentado e desgovernado.
MS – O novo presidente Javier Milei apresentou
um conjunto de propostas para a reforma do sector da saúde. O mais importante
seria o estabelecimento de um seguro de saúde universal, operado por companhias
de seguros privados, com subsídios públicos para que os mais pobres possam
pagar os prémios. O que o senhor acha desta e das demais propostas do Governo
Miley para o setor saúde na Argentina? Serão viáveis?
CV – A visão de Milei até então era dogmática do
pensamento liberal. À medida que se aproximava do poder, começou a ver as
coisas de uma forma mais realista e definida. A construção de um seguro
universal a nível nacional parece distante e impossível dados os interesses em
jogo e a presença relevante das províncias no esquema dos serviços públicos, a
perda de relevância da segurança social nacional (devido ao desemprego e aos
baixos salários). Há certo desinteresse e incapacidade do sector privado para
enfrentar um desafio desta magnitude. O protecionismo e a ausência de
concorrência atravessam os mercados da Argentina e, em particular, o setor da
saúde, onde existem enormes empresas financeiras pré-pagas e empresas cativas
na indústria de dispositivos e medicamentos, pelas quais os cidadãos acabam por
pagar grandes somas. Os resultados do sistema não são condizentes com o nível
de investimento realizado pela sociedade argentina, quase 10% do PIB. É verdade
que existe corrupção, mas também existem elevados custos de transação, aliados
aos custos de coordenação e motivação no funcionamento do sistema.
MS – O que se espera que aconteça com as Obras
Sociais, com o PAMI, com o Ministério da Saúde e com os sistemas provinciais de
saúde face às reformas que o governo pretende implementar?
CV - As obras sociais e os sindicalistas têm
grande capacidade de adaptação. O seu papel próximo do poder torna-lhes mais
fácil eliminar ineficiências e problemas na gestão da seguridade social. Mas
negociam salários e condições, têm vantagens para que governos de diferentes
tipos tenham atenção especial e evitem a destruição criativa que seria uma
redução drástica do número de obras sociais para torná-las mais sustentáveis
e cobrir um pool de riscos maior que permita que os altos custos associados a incorporação de tecnologia
médica, que já começam a crescer, sejam controlados nos próximos anos.
Entendo que o Ministério da Saúde irá trabalhar
em harmonia com as províncias, irá ajustar-se a uma situação mais real, que é a
de já não gerir hospitais ou sistemas de saúde, e deverá ter clareza sobre
quais são as suas funções. O que entendo é que estas funções são os cuidados de
maior qualidade e segurança dos pacientes, compensação regional das
desigualdades via financiamento, apoio aos governos provinciais para
fortalecimento institucional, alguma inovação institucional ligada à criação de
uma agência tecnológica e um fundo que permita compensar riscos de medicamentos
de alto custo e baixa incidência.
MS – As propostas do presidente Javier Milei no
setor vão ferir muitos interesses de diversos segmentos da sociedade argentina.
Quais são as posições, comportamentos e perspectivas dos diferentes atores do
sistema de saúde relativamente a estas propostas? Quais serão as formas de
resistência e enfrentamento destes atores a estas propostas?
CV – Ainda não há um secretário ou ministro da saúde
com programa. Quem trabalhava com Milei caiu há uma semana e agora enfrentamos
a perspectiva de substituição. Os nomes que se ouvem estão ligados a diversos
setores que fazem lobby para nomear um ministro que deveria ter consciência de
governar direta ou indiretamente 10% do PIB. Relativamente às despesas
correntes que têm vindo a aumentar nos últimos dez anos, ninguém faz nada para
proteger o cidadão dos abusos a que é submetido. A defesa da concorrência é
outra área onde poderíamos contribuir para evitar os abusos da indústria
farmacêutica nos mercados locais ou o uso de medicamentos genéricos para
competir e baixar os preços. Há que melhorar os arranjos para produtos
biológicos e outros nichos de pequenos negócios que geram gastos sem valor
agregado.
MS – No seu ponto de vista, qual deveria ser a
trajetória das reformas do sistema de saúde argentino para alcançar o
compromisso com a universalização e a equidade na saúde, na perspectiva dos
Objetivos de Desenvolvimento Social das Nações Unidas até 2030?
CV - Acho que são:
Iniciar o debate sobre uma lei de
saúde que organize o papel de cada jurisdição com base na Lei 23.661 sobre
seguro nacional de saúde, e que contribua para evitar os problemas de
assistência e financiamento que acarreta a aprovação de leis para a saúde. Definir
um plano sustentável de benefícios de saúde para todos os habitantes do país;
Reforçar a atenção primária: Acordo
com entidades médicas para promoção de modelos cooperativos ou associações de
consultórios médicos privados, de forma a poder atribuir uma população a servir
e o correspondente pagamento per capita, ajustado pela capacidade resolutiva
dos médicos do sistema;
Criar, regulamentar e operar a
Agência de Avaliação Tecnológica. Identificar, com o parecer das sociedades
científicas, a lista de todas as práticas, procedimentos e medicamentos que não
acrescentam valor, para que não sejam financiados nem pelo sector público nem
pelo sector das obras sociais;
Propor a descentralização do PAMI
com negociações com as províncias para chegar a acordo sobre a transferência de
populações e recursos, devendo estas províncias assumir o compromisso explícito
de incorporar com plenos direitos os membros da assistência social provincial
ou o esquema estabelecido para a cobertura e atenção aos aposentados e
pensionistas;
Autonomia dos hospitais e
organização de redes de prestadores. Otimizar a gestão da arrecadação de
serviços prestados pelo setor público (hospitais) à seguridade social e ao
setor privado. Observe-se o modelo de empresa pública criado na Cidade de
Buenos Aires para cuidar da arrecadação correspondente. Isto deve ser
acompanhado pelo estabelecimento de um mecanismo de distribuição que promova o
pagamento aos profissionais e técnicos que efetivamente cuidam e sustentam a
prestação nos hospitais (residentes e outros funcionários);
Definir protocolos de segurança para
o pessoal de saúde que possam ser aplicados em todos os serviços, de acordo com
seu nível de complexidade e reduzir o prazo de cobrança de honorários
profissionais para 30 dias com atualização de acordo com o índice de inflação;
Avaliação, controle e acompanhamento
do processo de desinstitucionalização de acordo com a Lei de Saúde Mental;
criação e planeamento de redes integradas de serviços de saúde mental;
Medicamentos: 1) Estabelecer um
sistema que permita a rastreabilidade de medicamentos de alto custo e baixa
incidência (medicamentos especiais, doenças raras etc.) e um fundo de
financiamento de alto risco 2) Acelerar o processo de bioequivalência e
biodisponibilidade necessária para ser poder ter uma política genérica que
permita a concorrência.
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